QUEM SOMOS NÓS POR NÓS MESMOS – MARCOS LAMY


MARCOS LAMY: ARTE ENQUANTO PROCESSO CRIATIVO

Fruto de mais uma conversa de duas horas, o segundo perfil da série Quem somos nós por nós mesmos traz a trajetória do músico maranhense Marcos Lamy. O cantor e compositor de 25 anos é antes de tudo um criador, que se interessa especialmente pelo processo fundado na experimentação e no improviso. No perfil a seguir, Lamy narra de sua iniciação musical na infância cantando em corais ao seu mais recente trabalho de pesquisa na área da Etnomusicologia sobre o Terecô, passando pela história da banda Nova Bossa, a produção dos discos solo “Eu tô é tu” e “Cabeça ao fai” e o disco que vem por aí em parceria com a mineira Luiza Brina, o parceiro Hermes Castro e o produtor Adnon Soares. Fala ainda de identidade cultural, atitude política e educação.
TEXTO POR TALITA GUIMARÃES
FOTOS POR TALISSA GUIMARÃES
Tarde de sábado, 13 de agosto de 2016. A capital maranhense está ensolarada. Cruzo São Luís da região metropolitana até a Cohama com a fotógrafa Talissa Guimarães a tiracolo. Ao chegar ao endereço informado, conferimos a localização da casa de nosso entrevistado de setembro enviada via what’sapp e tocamos a campanhia. Nada. Aviso por mensagem de texto que chegamos e alguns minutos depois Marcos Lamy aparece na porta da casa ao lado, de bermuda. Batíamos no número errado. Poxa, Google!
Sorridente, Lamy nos recebe à vontade e sem cerimônias. Guia-nos pela casa onde mora com os pais e nos leva até um aposento com mais de uma dezena de instrumentos musicais. O interesse por percussão fica evidente logo à primeira vista com congas, timbal, pandeiros, chocalho, bongô, agogô, reco-reco, pandeirão, alfaia e outros instrumentos percussivos espalhados pelo lugar, que tem ainda uma bateria desmontada, violões, guitarras, um teclado controlador, uma estante com instrumentos pequenos e até um violino. Somente quando Lamy pega uma camisa branca em uma gaveta próxima e a veste, sentando em seguida em uma cama é que notamos que a salinha de música é na verdade seu quarto.
“Então é pra eu falar sobre minha relação com a música desde o começo. É isso?”, pergunta após se acomodar na cama e ajustar a TV do celular no jogo da seleção brasileira de basquete pelas Olimpíadas Rio 2016.
Sim, Lamy, você que dorme e acorda rodeado de instrumentos, conte-nos como é viver assim.


Marcos Lamy em seu quarto: instrumentos musicais, experimentos nas artes visuais e equipamentos de produção
INICIAÇÃO MUSICAL, CRIATIVIDADE E NOVA BOSSA
Montar banda com amigos na adolescência
foi primeira oportunidade de criação na música
Entrar para o coral da escola por volta dos sete anos de idade assegurou o primeiro contato de Marcos Lamy com a música para além da experiência como ouvinte. “Foi minha primeira relação com música que me deu um caminho”, considera Lamy que vivia cantarolando as músicas aprendidas na escola. 
O caminho aberto pelo coral levou ao estudo de um instrumento, quando aos treze anos Lamy e seus amigos decidiram montar uma banda. “Cada um escolheu o que ia tocar mesmo sem ninguém saber tocar e a gente pediu pros nossos pais de presente de aniversário. Eu já tinha um violão em casa, só que eu pedi uma guitarra. Ai comecei a fazer aula de violão”, lembra, revelando um ambiente familiar aberto à música. “Minha família tem uma relativa afinidade com música, meu pai principalmente, toca violão, canta. E minha mãe sempre incentivou bastante”.
A partir de então o aprendiz de músico ingressou em uma rotina que não se dissociava mais de atividades criativas relacionadas à música. Além da dedicação especial que a banda demandava com o estudo do instrumento e os ensaios, Lamy, que já escrevia poemas, passou a musicar o que compunha. Eu era uma das pessoas que fazia a música da banda e eu acho que desde antes da música na minha vida eu sempre tive uma relação muito forte com essa coisa de criação, sabe? Ah, se eu vou jogar um jogo eu gosto de inventar as regras, gosto de inventar o jogo. Eu sempre gostei de desenhar, de escrever. Eu gosto de criar. Eu me considero uma pessoa criativa não no sentido de ‘ah, eu tenho capacidade de criar fácil’. Não. É porque eu gosto, é uma coisa que me motiva: criação, improviso, atividades criativas. Quando eu comecei essa banda tive a primeira oportunidade dentro da música de criação”, conta.  
“Dos treze aos dezessete anos eu fiz bastante música. A maior parte eu não toco mais hoje porque são outros momentos, mas que eu ainda guardo assim no meu coração” 
O músico atribui à adolescência seu período mais intenso de composição. “Até mais intensa do que hoje, que tenho diversas outras formas de gastar minha energia criativa: pensar em show diferente, num CD, em todo o processo de produção do CD, de como vai ser. Então eu gasto minha energia criativa com uma série de outras coisas. Nessa época eu só escrevia e musicava”.  


Antes da Nova Bossa, Lamy integrou
bandas chamadas Fantail Trio e Sem Sinal.
A Nova Bossa, que existiu no cenário da música ludovicense entre 2008 e 2012, proporcionou uma experiência mais profissional para os garotos que até então só tocavam na escola onde estudavam, nas casas um do outro e na escola de música. Ao procurarem um estúdio para gravar as composições – próprias ou frutos de parcerias entre eles – trabalharam pela primeira vez com Adnon Soares, músico que lhes deu os primeiros direcionamentos em termos de produção musical. A banda que deu o pontapé inicial foi se reconfigurando ao longo dos anos, seguindo um fluxo contínuo de experimentações na música e agregando novos amigos músicos até chegar ao trio formado por Lamy com Hermes Castro e André de Queiroz que virou o quarteto conhecido como Nova Bossa, ao ganhar o reforço do hoje nacionalmente conhecido Phill Veras.
Com o quarteto, Lamy ingressou no circuito de shows noturnos que até então não fazia parte da rotina das outras bandas que ele integrara. Após o primeiro show em um bar para um evento realizado em parceria com a Trupe dos Bardos, a Nova Bossa tocou em várias casas noturnas e barzinhos de São Luís, entre elas o Armazém da Estrela e o Creole Bar. Fizeram especiais em tributo a Los Hermanos e Chico Buarque, além de apresentações em teatros e festivais abrindo shows para artistas e bandas como Garibaldo e o Resto do Mundo, Mombojó e Marcelo Camelo.
A recepção positiva do público incentivou Lamy e Phill a comporem mais, resultando em um vasto repertório. “Todo final de semana eu e Phill fazíamos duas músicas. A gente escolhia assim ‘ah, nesse show vai fazer essas, ai pra não enjoar nesse outro show a gente vai fazer essas outras’.” , conta Marcos Lamy lembrando que na época todos estavam terminando a escola, o que dava mais tempo livre para os ensaios, que aconteciam cerca de três vezes por semana.
A formação instrumental original da Nova Bossa era marcada por quatro violões, mas com o tempo os músicos começaram a se alternar entre baixo e bateria, chegando a comprar os instrumentos com os cachês das apresentações que faziam. “Na Nova Bossa a gente tinha muito essa sinceridade de não fazer as coisas porque elas funcionavam, mas porque a gente tava muito a fim.” conta Lamy, segundo o qual o clima da banda era de liberdade para que os integrantes experimentassem os instrumentos sem julgamentos dos companheiros. À medida que os shows foram ficando mais frequentes e os compromissos mais sérios, contudo, a inabilidade com a bateria compartilhada pelos quatro começou a incomodar, o que foi resolvido com o convite para que o baterista André Grolli entrasse para a banda.
Para Marcos Lamy um momento muito importante para a trajetória da Nova Bossa foi o show que a banda apresentou no Teatro Alcione Nazareth em julho de 2011. “Foi um show muito importante pra gente porque foi nossa primeira produção. A gente pensou como é que ia ser, queria que fosse voz e violão, não queria batera, quer dizer, teve até batera, mas a gente queria que fosse violão, saca? Nylon. A gente queria que fosse um volume mais baixo, que fosse uma coisa mais intimista. A gente montou um cenário que era como se fosse uma sala de estar”, Lamy recorda sublinhando a diferença das produções anteriores que se resumiam a providenciar o som, fazer ingressos, vender e divulgar.


Nova Bossa no palco do Teatro Alcione Nazareth em julho de 2011. Da esquerda para direita: André de Queiroz, Marcos Lamy, Phill Veras, Adnon Soares e Hermes Castro.

O show em questão sinalizou aos jovens músicos que a profissionalização na música era um caminho a ser levado a sério. Entre 2010 e 2011, a banda contou com o suporte do produtor Bavu da Basarone Produções, que passou a mediar o contato dos contratantes com a Nova Bossa e providenciar os equipamentos necessários para as apresentações. Foi uma época massa, a gente fez bastante show, foi bem mais tranquilo”, afirma Marcos Lamy.
Um futuro para banda, contudo, foi se desfazendo aos poucos. Após um período longo em estúdio produzindo o que seria o primeiro disco da Nova Bossa, o grupo sofreu problemas técnicos consecutivos que impossibilitaram a concretização do projeto fonográfico, o que levou a um desgaste inevitável das relações e objetivos de cada um com a banda. Fora a música, cada integrante tinha chegado à maior idade e às cobranças por definição acadêmica e profissional, o que reduziu o tempo junto e diminuiu o ritmo de trabalho na música. “Começou a ficar um momento meio tenso da gente ter que se ver menos e também ao mesmo tempo já tem um certo desgaste emocional de muito tempo convivendo muito intensamente”, considera Lamy.
“A banda [Nova Bossa] acabou e as coisas já foram tendo um seguimento imediatamente porque a gente não se distanciou. Tipo a banda acabou, mas logo depois Phill começou a gravar, gravou aquele vídeo [“Pode Vir”] com [o cineasta] Marcos Ponts.” 
EU TÔ É TU, CABEÇA AO FAI E LUIZA BRINA
Entrementes, Marcos Lamy e Hermes Castro começaram a estudar gravação e adquirir equipamentos próprios. Os dois, que são amigos desde a adolescência, sempre participaram muito de perto dos processos musicais um do outro. Mesmo quando Hermes não estava envolvido diretamente, estava presente e acabava fazendo vocal, opinando e acompanhando o processo. A recíproca, com Lamy acompanhando de perto o trabalho em estúdio de Hermes Castro que resultaria em EP homônimo (2013)  e posteriormente no CD Serenô (2016), é verdadeira.
“Eu e Hermes, a gente nunca fez nada sem o outro.” 
É desse período, portanto, as músicas que mais tarde vieram a compor os EP’s dos trabalhos solos de ambos. Após o fim da Nova Bossa, Lamy gravou nos estúdios Casaloca, de Adnon Soares e Andar de Cima de Memel Nogueira em São Luís as canções que resultaram em seu primeiro disco solo, o EP Eu tô é tu (2013) com seis faixas que acomodaram seus interesses musicais em percussão, ritmos regionais e elementos que até então não haviam sido explorados no repertório da Nova Bossa.

“Eu tô é tu”, primeiro EP de Marcos Lamy, é apresentado ao público em 2013 com dois lados: Azul e Vermelho, neste último o músico é acompanhado pela banda Os Mingongos.
“O que não é de mim” (Marcos Lamy/Hermes Castro), “Me leva longe” (Marcos Lamy) e “E tem mais” (Marcos Lamy), faixas do lado azul do EP são composições contemporâneas ao término da Nova Bossa e ao período em que Lamy e Hermes montaram um estúdio para gravar as próprias músicas.
O registro, contudo, não é considerado por Lamy um cartão de visita pleno de seu trabalho.“Terminei o CD e fiquei ‘cara isso aqui não é tudo o que eu sou como artista’ sabe? Esse CD é legal, eu gosto dele, mas eu não me sinto representado plenamente por esse CD. Claro que isso é impossível, mas tá faltando muito a dizer. E aí desde que eu terminei o primeiro CD, eu comecei a buscar o que seria o segundo.”
Para chegar ao Cabeça ao fai (2014), o músico descreve um percurso longo de busca por um processo de criação que o satisfizesse para além do resultado alcançado em termos de sonoridade. Naquele momento, Lamy queria vivenciar um processo de experimentação e criação musical que o tirasse da zona de conforto e representasse um modo de fazer autêntico e novo. 
Incomodado com a ausência de um conceito em Eu tô é tu, que era mais uma compilação de seu trabalho fora da Nova Bossa, o músico começou a pensar a própria identidade e seus anseios musicais a fim de construir um trabalho sonoro que o representasse com maior fidedignidade. Inicialmente decidiu fazer um disco temático. Elegeu a infância como tema e começou a compor. A ideia era que todas as letras, arranjos e timbres remetessem à infância do músico, período de enorme valor para Marcos Lamy. Nove músicas depois, contudo, desistiu do tema por não gostar do que havia composto.
“Eu comecei a compor, a fazer o CD, fiz as nove músicas, não gostei. Ai beleza, comecei a pensar: esse formato de composição tá me matando, tá muito igual ao que eu fazia, saca? Quero uma coisa diferente, experimental, que fale mais sobre como minha cabeça funciona. Eu não sou um cara tão organizado, eu não sou um cara tão quadrado assim.” 
Interessado em um processo de imersão, Lamy cogitou se ausentar da rotina para compor o CD de uma só vez isolado em algum lugar que o permitisse se concentrar só no disco. Considerou se hospedar em um hotel e chegou até a passar alguns dias sozinho na casa de sua namorada, que precisou viajar com toda a família para São Paulo, deixando Lamy em sua casa cuidando de seus animais de estimação.
Nessa época eu comecei a compor esse CD de novo, com outro tema, numa outra viagem, mas também ficou uma merda. Ai eu falei assim ‘cara o problema é a forma como eu tô compondo, saca?’ O problema é pegar um papel, escrever uma letra, pegar o violão e cantar. Isso é tendencioso, vai me fazer ir pelos mesmos caminhos. Eu tenho que fazer uma outra coisa, eu tenho que fazer um CD que tenha mais, que me permita improvisar dentro do processo de gravação. Tenho que fazer um CD que não comece pelo violão, que as melodias sejam soltas, que não sejam uma coisa do jeito que eu costumo ouvir música, que eu costumo fazer música. Ai eu comecei a, nesse intuito pensar, o 'Cabeça ao fai'.” 
Com novas diretrizes em mente, Lamy foi com Hermes para uma fazenda onde após mais algumas tentativas insatisfatórias se deu conta de que precisava abrir mão do resultado final como objetivo em nome do interesse exclusivo pelo processo. Eu falei ‘cara, quer saber? Eu vou fazer uma loucura aqui, vou fazer uma doidice: vou fazer um CD que eu tenha nenhum compromisso com o público, então eu vou fazer um CD que eu não vou lançar. Resolvi fazer um CD que eu não ia lançar, saca? Botei isso na minha cabeça.”

Improviso, pesquisa e experimentação são os componentes do processo criativo que interessam ao músico.
A decisão arriscada custou a ser compreendida pelas pessoas mais próximas, mas foi levada a cabo pelo músico que contou com o apoio irrestrito da mãe que o ajudou a financiar o processo de gravação, mesmo ciente de que se tratava de um disco que não daria o mesmo retorno financeiro que o filho tivera com o primeiro. 
“Eu queria ter o processo. Eu não queria ter o produto. Não queria ter o CD pronto. Eu queria fazer uma coisa diferente pra eu me provar que eu conseguia fazer um negócio diferente, saca? Pra eu me provar que eu conseguia compor um processo mesmo que fosse feio, que fosse desagradável, que eu mesmo não gostasse. Eu queria ter uma coisa que eu falasse assim ‘olha esse processo aqui é um processo criativo que eu me permiti fazer e que eu não conseguiria de outra forma’.” 
Nesse contexto, foi o estudo de percussão quem inspirou o músico a começar pelos ritmos. Fiz uma progressão rítmica do que eu queria, tipo ritmos mais regionais, ritmos locais, ritmos de São Luís, tipo mina, boi, tribo de índio que era um outro ritmo que eu tinha conhecido recentemente que é uma coisa que se toca no carnaval aqui, bloco tradicional também do carnaval”. Somaram-se a isso o maracatu, o samba, o jazz e até mesmo mantras com influências árabes e indianas. “Cada música tinha um mote, não é que ela ia seguir aquele ritmo a música inteira, mas ela tinha uma coisa que me fazia principiar aquela composição”, explica Lamy.
O passo seguinte foi gravar as percussões no estúdio Andar de Cima com Memel Nogueira. “Fui pro estúdio com o processo do CD inteiro na minha cabeça, só que era um processo muito louco, que a galera não tava botando fé que eu ia conseguir fazer. Eu mesmo não tava botando fé que eu ia fazer aquilo”, conta o músico.
“O processo foi o seguinte: eu criava ritmos, ia lá no estúdio e gravava. Botava um monte de instrumento de percussão e tinha uma faixa só de percussão. Sem pensar no que que eu ia cantar, como ia ser a harmonia, como ia ser nada. Só tinha as percussões. E eu fiz isso de todas as músicas do CD. Fiz as nove músicas só ritmo, só ritmo, só ritmo. Sem pensar, sem me permitir cantar uma palavra em cima pra na hora que eu fosse gravar eu não ter tendência a fazer alguma coisa. Eu queria que quando eu fosse gravar, aquilo ali fosse absolutamente inédito pra mim, saca? Então eu pensei o seguinte: eu vou fazer as percussões todas, gravar todas as percussões, depois eu vou pra casa. Vou gravar em casa porque eu não vou conseguir fazer isso no estúdio que é cantar o que me viesse na cabeça em cima das percussões” 
A ideia era registrar as letras que viessem à mente. “O que eu improvisar e gravar vai ficar”, comunicou resoluto a Memel, que tentou convencer Lamy  para que ele gravasse as vozes no estúdio mesmo.
Em casa, Lamy contou com o suporte do amigo Hermes para operar a gravação. Precisou de vários testes até chegar a um resultado que lhe agradasse. “Vim pra cá pra casa e comecei a gravar. Tudo uma merda, odiei tudo que eu gravava. Ai eu fiquei muito nervoso e fui tomar um banho. Uma hora assim já no segundo dia que eu tava tentando gravar me veio na cabeça [canta] ‘lá vem o vento/ bateu lá na proa’, ai eu voltei, gravei e foi a primeira coisa que começou a fluir.”, recorda o músico, cuja decisão acarretou ajustes técnicos no retorno ao estúdio para gravar os outros instrumentos.
“Eu imaginei que isso ia me dar muito trabalho porque quando tu grava voz sem referência harmônica tu não sabe qual é o tom que tu tá cantando, então tu tem que ficar caçando e algumas coisas eu cantei em afinações que não tavam dentro do padrão de afinação dos instrumentos, saca? Porque tipo tem uma referência: todo LÁ é 404 hertz e ai tu afina a partir desse LÁ todos os sons nas frequências certas. Só que se tu canta sem uma referência harmônica, sem um LÁ 404, tu não sabe qual o LÁ que tu tá dando, então teve música que a gente teve que desafinar um pouquinho o baixo pra poder tocar em cima porque eu cantei o que tava vindo na cabeça. A maior parte das músicas não precisou porque às vezes as percussões eletrônicas já tinham uma frequência que tava padronizada, aí eu acabei seguindo isso sem perceber, mas a maior parte das músicas ficaram dentro da escala certinha.” 
Após alguns meses envolvido na gravação das percussões, Marcos Lamy revela que começou a sentir medo por conta do tempo tomado. “Foram meses só gravando percussão e sem saber se aquilo ia dar certo, com uma angústia muito grande de ir pro estúdio duas vezes por semana sem saber o que que ia dar aquilo ali. A percussão foi a parte mais demorada, porque é muito instrumento. Eu tive que criar muita coisa e eu errava muito porque eram ritmos bem novos pra mim. Eu tava estudando percussão há pouco tempo.”, conta o músico que teve aulas com o experiente percussionista Darkliwson Brandão.
A complexidade do processo, contudo, injetou mais ânimo em Lamy pois garantiu a sensação de que ele estava se permitindo vivenciar e aprender com a experiência. “Estudar percussão não é uma coisa só de estudar técnicas, é estudar culturas. Na verdade isso me motiva muito hoje em dia, até muito mais que nessa época. Essa época foi o princípio, tanto que muitos daqueles ritmos que eu toquei, hoje eu já tocaria muito diferente, porque eu vejo que tem várias coisas que eu fiz que não são tão legais ou que não representam tão bem, mas é uma experimentação, é um processo. Isso que eu acho legal.”,  reconhece.
“O ‘Cabeça ao fai’ eu só divulguei porque pra mim ele é o processo, ele não é o produto. Ele é uma arte enquanto processo. Sabe essas artes de pintores ou de intervenções que são obviamente o processo, não é o resultado final, é tu ver aquela pessoa fazendo aquela coisa? Pra mim esse CD é a mesma coisa.” 
Para concluir a mixagem, Lamy contou com o trabalho conjunto de Adnon Soares e Hermes Castro, em um processo de dedicação exclusiva na casa de João Simas, que tocou baixo no disco, no Araçagy. 

Capa do disco “Cabeça ao fai”
Ao ouvir o trabalho pronto pela primeira vez, quase um ano após o início de tudo, Lamy foi surpreendido positivamente com o resultado obtido. “Eu fiquei muito feliz. Eu não imaginava que ia ficar do jeito que ficou. Achei que ia ficar muito mais bagunçado, muito menos audível”, admite.
Após ser incentivado a divulgar o disco por músicos que acompanharam partes do processo, Lamy decidiu lançá-lo gratuitamente na internet para audição. “Os músicos me incentivaram muito a lançar, porque a galera que tava na Casa Loca e acabou ouvindo gostou muito do CD.”, conta.
O nome veio por último, quando o disco já estava pronto para ser divulgado, com conceito visual desenvolvido por Lamy e Pupo Ico. Entrementes, durante a sessão de fotos para a produção gráfica do disco o músico posou com seus instrumentos para Pupo, que teve a ideia de fotografar Lamy com uma alfaia na cabeça. Em algum momento que Lamy não sabe precisar, memórias de infância vieram lhe inspirar um nome para o processo que dialogaria inconscientemente com a imagem. “Quando eu era guri tinha um negócio que a gente soltava pipa e quando cortava a galera falava ‘ao vai, ao fai’. Na minha cabeça era ‘ao fai’ e eu até brincava com algumas amigas minhas de faculdade que era ‘ao fai, ao fai’ tipo de cabeça solta, de cabeça ao sabor do vento, uma coisa que não tem uma corda segurando, saca? E também tem uma alfaia na minha cabeça.”, sorri ao explicar o jogo de linguagem incidental estabelecido.
“Por que que eu não vou lançar uma parada que a galera tá curtindo? Pode ser que não seja pro mesmo público do meu primeiro CD, mas  tem um público sabe? Tem uma galera que compreende essa intenção, que vê que eu não fiz aquilo ali pra fazer graça, que eu não quis fazer uma loucura, que essa loucura foi resultado de um processo, saca? Porque aquele mesmo CD, se eu tivesse tentado fazer aquilo ia ser uma coisa muito tosca. Porque eu não gosto dessas coisas do cara tentar fazer forçadamente alternativa, uma coisa forçadamente diferente. Só que aquilo ali foi uma coisa que foi muito natural pra mim, foi tudo parte de um processo espontâneo. Essa que é a questão: eu tenho que ser sincero com meu som, eu tenho que ser espontâneo com meu som.”
Após o lançamento do disco, que não previu shows, Marcos Lamy seguiu tocando o repertório do primeiro disco com novas músicas, entre elas uma versão de “Na asa do vento” (João do Vale), com Os Mingongos nos festivais WEBFESTVALDA (RJ) e FUNMUSIC (RS). Em maio de 2016, o músico tocou no Ocupa MINC/MA, movimento nacional de ocupação das sedes do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico – IPHAN em protesto pelo fim do Ministério da Cultura. No repertório (vídeo abaixo), músicas do primeiro disco e a faixa 1 de Cabeça ao fai.

Vídeo: Manlio Macchiavello
Nesse meio tempo, conheceu a cantora e compositora mineira Luiza Brina, de quem abriu um show em São Luís. Da aproximação musical com Luiza brotou uma amizade que renderá o próximo disco, em parceria com Brina, Hermes Castro e Adnon Soares. Lamy já esteve em Belo Horizonte compondo com Luiza Brina e fazendo as primeiras gravações em São Paulo, no estúdio que Hermes montou na cidade.
O novo trabalho, que é visto por Lamy como continuidade de um fluxo que vem sendo construído desde o primeiro disco, terá composições resultantes de parcerias entre os quatro artistas, que se alternarão nas vozes também. 
“No ‘Eu to é tu’ eu comecei a estudar percussão. No ‘Cabeça ao fai’ eu já toquei percussão, já foi eu começando a estudar outros ritmos que eu não conhecia na época do ‘Eu to é tu’ e agora eu terminei minha faculdade e teve uma influência muito grande sobre a minha vida como músico. Primeiro que eu tive que parar por mais de um ano de ser músico como foco, porque eu tive que fazer estágio e monografia. E segundo que eu fiz minha monografia em etnomusicologia que tem tudo a ver com o que eu tô fazendo agora.” 
Enquanto se dedicava ao processo do Cabeça ao Fai, Marcos Lamy deixou em stand-by a faculdade de Ciências Sociais que cursava na Universidade Federal do Maranhão – UFMA, para onde retornaria um ano depois a fim de aliar seu novo olhar sobre o objeto percussão com seu gosto por pesquisa.
PESQUISA, ETNOMUSICOLOGIA, TERECÔ E YLÚGUERÊ
A veia científica vem de berço. Filho de médicos que são também professores doutorados com carreira acadêmica na Universidade Federal do Maranhão, Lamy cresceu em um ambiente que o incentivou a buscar um curso superior que viabilizasse seu desenvolvimento como pesquisador. “O que sempre foi mais importante na vida profissional do meu pai foi a pesquisa. Ele é um pesquisador e eu sempre gostei muito de conversar sobre pesquisa com meu pai, sempre assisti muitos programas de documentário com ele, então sempre tive veia de pesquisa muito forte em mim.”, conta o rapaz que cogitou estudar Música e até Biologia, mas acabou optando pelas Ciências Sociais devido ao interesse por Antropologia e Cultura. 
Após ingressar no curso, Lamy se envolveu com um grupo de pesquisa em política por contar com um professor orientador tão bom que o inspirava a estudar e participar das reuniões, embora o objeto não fosse de uma área que o interessasse tanto. Quando o momento de produzir o trabalho de conclusão de curso se aproximou, Lamy cogitou escrever sobre a pesquisa em política que já tinha em andamento, mas o projeto não fluiu. 
A época coincidiu com a fase de criação do Cabeça ao fai, cujo tempo dedicado exclusivamente ao disco acabou mostrando-se importante para que o músico se envolvesse com ritmos que aumentariam o interesse pela pesquisa em Etnomusicologia, abrindo um novo caminho para seu TCC. A pesquisa monográfica “Força e criatividade a partir da música no Terecô em Codó (Maranhão)” foi orientada pela Profª Drª Martina Ahlert, antropóloga com estudos sobre o Terecô em Codó-MA.
“Fiz minha monografia praticamente sobre percussão, então tem tudo a ver, as coisas que eu vi no campo, que eu pesquisei em Codó. Pesquisei sobre o Terecô que é uma religião afro-brasileira que tem lá em Codó. Na verdade não só as coisas que eu pesquisei em Codó, mas as coisas que eu pesquisei de literatura sobre antropologia de religiões afro-brasileiras, de matriz africana, me deu um outro panorama do quê que é ritmo, do quê que é música. Porque etnomusicologia, a primeira questão dela é isso, tu tá estudando música, mas o quê que é música? Então desconstruí muita coisa, desconstruiu muito, muita coisa que eu comecei a desconstruir no ‘Cabeça ao fai’, mas que a antropologia me deu ferramenta pra desconstruir bem melhor, então quando fui pra Codó tive contato com outros ritmos.”
Ao se aprofundar no estudo das questões culturais vinculadas intrinsecamente aos ritmos, Lamy entrou em contato com o Ylúguerê, Instituto de Arte, Educação, Política e Cultura Afro-brasileira coordenado pelo percussionista Oswaldo Abreu que desenvolve projeto de arte-educação para crianças e adolescentes no bairro da Areinha em São Luís, com o objetivo de promover a diversidade por meio da educação étnico racial. A instituição, que oferece oficinas de percussão, mantém uma banda homônima que Lamy chegou a integrar e que dialoga profundamente com as linguagens de improviso em apresentações ao vivo que tanto interessam ao músico.
IDENTIDADE, EDUCAÇÃO E CULTURA
O período dedicado à experiência com o Cabeça ao fai seguido pelos estudos para a monografia trouxeram à tona várias questões novas sobre as quais Lamy tem refletido atualmente no sentido de fortalecer uma identidade musical voltada para a pesquisa e incorporação de elementos novos aos processos de criação, produção e difusão.
Pensar em como o público se relaciona com a música, por exemplo, passa a interessar ao compositor de modo especial.
“Tentar ser inclusivo porque eu nunca tive problema com isso, nunca fui um músico que falou assim ‘eu não tenho que pensar em público’. Eu sempre tive muito problema em ser honesto. Em ser honesto com as propostas que eu tenho. Se a proposta que eu tô tendo agora é pensar em público, isso é honesto. Eu não vou fazer uma música vendida porque agora eu tô pensando em público. Eu vou continuar sendo honesto nas minhas composições, vou continuar falando sobre coisas que me importam, continuar fazendo coisas que me emocionam só que agora tentando inserir outros elementos que eu antes não conseguia, saca? E pensar sobre os elementos, eu sempre pensei sobre os elementos que tinham na minha música ou não. Na época da Nova Bossa eu sempre ficava pensando ‘porra, a minha música parece com Los Hermanos', saca? Eu pensava nisso. As pessoas falavam e eu pensava. Falava o quê que eu posso fazer pra parecer menos? Porque eu não quero ser a cópia de ninguém, saca? Então isso nunca deixou de ser uma preocupação minha: o público. Mesmo no 'Cabeça ao fai', que eu pensei em não lançar, eu tinha a minha referência de mim como público, aquilo tinha que me emocionar, sabe? Não era uma coisa que eu vou fazer o que eu quiser. Não. Aquilo ali pra mim tem que funcionar minimamente, então nesse meu novo processo isso tá muito intenso. Ritmos que são dançantes, sabe? Permitir a dança no meu show, que isso é uma coisa que é muito importante. Tu não vê um ritmo popular no Brasil que não seja, que não tenha dança sabe, tu não vê o boi, o Terecô, o forró, o arrocha, o sertanejo universitário que as pessoas não dancem, elas tem que dançar pra ser um ritmo popular.”
Influenciado pela experiência de palco com o Ylúguerê, cuja relação com o público é de muita dança e sintonia, Lamy busca atualmente entender como a própria música dialoga com o público e quem são as pessoas que se interessam pelo som produzido por ele. 
“Uma coisa que eu comecei a me perguntar antes de fazer o 'Cabeça ao fai' e que agora é muito mais importante é: o quê que tem na minha música que faz dela sectária, saca? Que faz dela atingir só o público universitário? Por que a música do Terecô mexe tanto com aquelas pessoas que tem aquelas referências, por quê que o forró mexe, por quê que o boi mexe tanto com aquelas pessoas? O quê que tem naquelas coisas ali ou o quê que tem na minha música que não permite ultrapassar essas barreiras, sabe? Por que eu sou um músico universitário para universitário, sabe? E aí eu comecei a pesquisar isso, então esse meu próximo CD com Luiza já tem uma série de coisas que tem essa intenção de atingir um público diferente.
Assim como durante o Cabeça ao fai Lamy precisou dar um tempo na faculdade, agora após o TCC a prioridade volta a ser a produção musical, que ficou em modo espera enquanto o rapaz se dedicava à conclusão do curso.
Segundo Marcos, a motivação em criar algo novo na música ganhou novo impulso após esse período de estudo. “Tô voltando agora com outra cabeça, com outra energia, sabe? Isso [período dedicado ao TCC] me deu outras inspirações, outras energias. Eu tô querendo fazer outras coisas. Na verdade isso sempre foi o que me motivou, saca? Como eu te falei que desde criança eu sempre quis criar, eu sempre quis procurar caminhos que as pessoas não trilham”, conta o músico que ri ao completar que isso se deve ao fato de sempre ter se achado muito incompetente para fazer tão bem o mesmo que os outros conseguem fazer. Pergunto se o músico é muito autocrítico ao que Lamy responde que se considera consciente das próprias limitações, ao mesmo tempo em que crê ser confiante no que julga ser talentoso. “Eu acho que isso é saudável, saca? Saber que eu não sou talentoso pra certas coisas, mas que eu sou pra outras é ótimo.”
“Eu me exijo sempre tá na vanguarda porque eu não me acho tão apto a fazer o que já tá construído tão bem quanto os outros. Isso é até uma coisa que eu aprendi um pouco com Tom Zé. Tom Zé fala muito isso que, eu não acho isso dele, mas ele acha isso dele, que ele fala que inventa essas loucuras porque quando ele vai fazer o que todo mundo faz ele é pior que todo mundo. Eu também tenho isso, saca? Eu sei que não sei tocar violão muito bem, que eu não sei tocar percussão muito bem, que eu não canto tão bem, que eu não sei de teoria um terço de teoria musical que Luiza sabe, ou de harmonia e de ritmo que essa galera sabe. Mas em compensação eu pesquiso ritmos que pouca gente pesquisa, eu procuro caminhos que poucas pessoas procuram, eu tento sempre entender quem sou eu e no que eu tô inserido, saca? E acho que esse é o meu diferencial,  por isso que eu me dou valor como artista. Porque eu não me deixo seguir os mesmo caminhos, quando eu vejo que eu tô há muito tempo numa mesma coisa eu imediatamente brocho, não fico mais afim de fazer aquilo, então são esses processos. Eternamente ficar se reciclando, né, porque a gente não morre em vida. A gente não para de consumir coisas novas, a gente não para de aprender hora nenhuma. Acho que a gente tem que ser coerente com isso, sabe? Eu fico vendo, Roberto Carlos canta as mesmas músicas que ele tinha há trinta anos até hoje. Claro que aquilo ali tem um sentido pra ele, tem algum tipo de progressão. Mas aquilo ali pra mim é impossível, é inconcebível. O tanto de coisa que esse homem deve ter vivido nesse meio tempo que ele não tá incorporando nesse show dele saca, que o show dele é muito similar.”
Nesse sentido, Marcos Lamy admira profundamente artistas como Tom Zé e Caetano Veloso, que o inspiram a buscar um caminho de inovação. “É isso que eu quero ser, sabe? É isso que me admira, é isso que me move.”, afirma Lamy.
Enquanto articula sua fala firme sobre a própria trajetória e os caminhos que deseja seguir, Marcos Lamy gesticula muito. Abre os braços, conta nos dedos, leva as mãos à cabeça e mantém-se a maior parte do tempo sério, compenetrado em seu discurso acerca da própria história e posição no espaço em que ocupa. Quase não obtemos registros seus sorrindo, o que não significa que o rapaz não seja bem humorado ou não tenha esboçado sorrisos ao longo da conversa. A questão é que ao se dispor a nos receber em sua casa para nos conceder tão longa entrevista, Marcos Lamy leva a sério a oportunidade de compartilhar seus pensamentos e expressar suas opiniões sobre quem é e o que faz. 
E um dos pontos importantes que ele mesmo faz questão de frisar é seu interesse em assumir um papel educativo na sociedade. Não como professor em um sistema de ensino formal, mas como educador em prol de uma transformação social. “É um projeto pra minha vida. Eu me amarro muito em educação, saca? Em tentar ter um papel político nas coisas, ter influência sobre outras pessoas, mas uma influência educativa, não é tipo guiar a pessoa,  mas dar recursos pras pessoas pra elas pensarem outras coisas”, fala.
Lamy acredita que ao pesquisar outros ritmos e inseri-los em seu trabalho está contribuindo para difusão de elementos culturais para além do meio em que eles tradicionalmente circulam, como somente nas comunidades ou grupos folclóricos, por exemplo. “Tocando essas músicas, inserindo esses ritmos, mudando instrumentação do meu show, eu não faço isso só pra fazer um show legal e pro público curtir, mas também pra influenciar as outras bandas sabe, então eu quero que as outras bandas de São Luís que eu gosto comecem a ter percussionistas, comecem a inserir ritmos afro-maranhenses nas músicas, porque eu acho isso importante politicamente, saca? Eu quero que tenham mais percussionistas no nosso meio.” , fala o músico que estuda os ritmos em campo, frequentando os terreiros e acompanhando os batalhões de bumba-meu-boi, experiência que está influenciando sua nova produção.
Sempre que tem oportunidade de conversar com outros músicos e com quem tá iniciando, Marcos Lamy apresenta a percussão e os ritmos locais como elementos que podem ser incorporados. “Quando tenho algum papo com essa galera um pouco mais nova que eu, ou mesmo que tenha a mesma idade e começou um pouco depois de mim, que já começou sabendo que eu era músico e que me ouve por conta disso, eu tento ter essa influência sobre as pessoas, sabe, de falar ‘cara, a gente é maranhense, tem uma série de coisas aqui que tão pouco exploradas, que a gente não tá usando como recurso e que são importantes’. Tem um viés político em usar essas coisas”, acredita o músico para quem o pertencimento a uma identidade cultural maranhense tem forte influência da experiência com a música.
“Cultura permeia as pessoas, mesmo as que não querem ser permeadas. Cultura é sotaque, saca? Então todas as coisas já tavam em mim, eu sou maranhense, vivi aqui minha vida inteira, só que eu não tinha essa bandeira. Surgiu por causa da percussão, quando eu comecei a estudar fui vendo por causa da música de modo geral. Porque melodia de boi também é uma coisa que me interessa muito, não é só percussão, letras de música popular maranhense. Então a música que me fez falar que tem uma série de recursos aqui, de fontes que são maravilhosas, que são bem menos exploradas do que essas outras coisas que eu tava fazendo, saca? E que são muito mais interessantes pra mim, que me dão muito mais tesão hoje em dia. E acho que foi  por causa da música, totalmente por causa da música, que essa identidade se aflorou em mim.”
Dentro desse contexto, Lamy reflete sobre o processo pessoal de desconstrução que o encaminhou ao posicionamento atual  de defesa da difusão da cultura maranhense.
“Eu sempre pensei muito sobre a minha vida, sobre mim mesmo, sobre quem eu sou, sobre qual é o meu papel, sobre o quê que me interessa, o que que não me interessa, sobre o quê que é imposto a mim. Então eu sempre tive uma visão muito política nesse sentido. Não política no sentido de partido, mas política no sentido de pensar sobre a vida e ter atitudes politicamente orientadas. Quando eu comecei a pesquisar percussão e me envolver com música maranhense, desde o princípio eu soube que aquilo ali tinha um viés político pra mim sabe, de identificar aquilo com um movimento de resistência contra um sistema com o qual eu não concordo. É identificar aquilo como uma cultura que é colocada como uma cultura quase primata, uma cultura menos evoluída que a cultura europeia quando na verdade pra mim isso não representa em nada a verdade, saca? Começar a desconstruir dentro de mim o academicismo por causa dessa música, de pensar que conhecimento acadêmico é mais elaborado do que o conhecimento popular. Pensar, desconstruir essas coisas em mim, então é um processo muito múltiplo pra eu pensar que é só musical.”
O contato com as pessoas e suas formas de construção do conhecimento que envolvem o saber tradicional que mantém viva a cultura também é um ponto caro ao músico. “Quando eu tô lá em Codó eu não tô vendo só música, eu tô conversando com Luizinha, que é uma mãe de santo que é super inteligente e sábia e perspicaz, que tem uma noção de alteridade muito grande”, relata e em seguida critica veementemente o academicismo que menospreza o saber tradicional e não forma profissionais capazes de gestos de humanidade.
Para o músico, o contato com pessoas como Luizinha é fundamental para um entendimento mais largo da vida. 
“Tu vê uma pessoa que teve um caminho completamente diferente do teu e que tem uma perspectiva tão parecida com a tua sabe, como Luizinha, que é essa mãe de santo com quem eu mais convivi. Essa é uma das experiências da nossa vida que moldam a gente, que me fazem querer muito mais me identificar como maranhense, me identificar com a cultura popular maranhense, me identificar com esse tipo de música, me identificar com uma série de coisas, saca? Pensar o teu lugar, saca? Eu sou um homem heterossexual, branco, classe média alta. Tipo o quê que eu tô fazendo aqui? Eu tô reafirmando sem querer uma série de coisas que são nojentas, que são odiosas. Eu tenho que ter, não é uma coisa opcional, eu tenho que ter um papel político pra mudar o mundo num sentido positivo, senão eu tô mudando o mundo num sentido negativo, saca? Eu sou a figura do dominador. Eu tenho que me desvincular disso de alguma forma, saca? Eu tenho que ter meu papel político no mundo e esse papel político pra mim é através da educação, pra mim é através dessas bandeiras que a gente levanta, de cultura, de conhecimento, de tu não seccionar conhecimento.”
Marcos Lamy revela que tem o sonho de ser um educador e como projeto de vida abrir uma escola que mantenha um acompanhamento dos pais e filhos. “Pra que no futuro essas crianças mudem a vida de muito mais gente e que isso seja um ciclo, sabe? Acho que isso perpassa essas experiências. Minha vontade de fazer isso é porque pessoas me mudaram, mudaram os meus conceitos com o conhecimento delas e acho que essa é a única possibilidade da gente viver em um mundo um pouco menos merda”, declara o músico, que quando perguntado sobre a possibilidade de retornar à universidade como professor é enfático em declarar seu completo desinteresse pelo sistema de ensino formal, a quem direciona severas críticas.
“Não tenho menor vontade de dar aula de Ciências Sociais. Eu tenho vontade de dar aula em outro formato. Não uma coisa escolar. É uma desconstrução da escola, é uma troca de conhecimento que inclusive também perpassa essa parada da cultura que eu falei. Porque tu chega no Terecô ninguém vai te ensinar a tocar tambor. Ninguém vai te ensinar como é que se dança Terecô, ninguém vai te falar tal encantado é assim e ele está acima de tal encantado que é assim e esse outro encantado tá aqui e as influências do Terecô são africanas, europeias e indígenas. A gente dentro do conhecimento academicista perpassa educação emburrecedora, incapacitadora, saca? Eu vejo que muitas dificuldades que eu tenho de aprender certas coisas hoje pela forma como eu consegui conhecimento até hoje, que é uma forma limitante. Tu perpassa uma explicação que é muito lógica, que é muito organizada, mas que é muito emburrecedora, ela te rouba de encontrar teus próprios caminhos naquele conhecimento. Eu tenho interesse em ser um educador, uma pessoa que tá a fim de transmitir qualquer conhecimento que a pessoa queira de mim e que eu tenha, eu vou transmitir aquele conhecimento.”
Lamy já experimenta esse caráter educador ao oferecer oficinas de percussão para um grupo de amigas que tem envolvimento com música. Faz questão de esclarecer que embora dê aulas focadas na experiência, faz uso de cartilhas e métodos que o auxiliam a ensinar, pois crê ser importante. Sua crítica à educação formal é dirigida ao modelo rígido pautado em um conteúdo que não se liga à prática e à construção autônoma de conhecimento.
Atualmente, o músico se prepara para o mestrado e para tocar os projetos do disco com a Luiza Brina e a formação de um bloco de carnaval com uma bateria que tocará um repertório de músicas conhecidas em ritmos regionais. 
Ao narrar sua trajetória de um homem de 25 anos, Marcos Lamy preencheu nossas duas horas de conversa com um trajeto consistente de amadurecimento. O jovem músico e pesquisador maranhense, que nos rendeu trinta e quatro páginas de áudio transcrito, discorre com propriedade sobre a própria vida, feitos e anseios. Exalta-se em alguns momentos ao defender o que o acredita ou criticar o que considera errado tanto quanto amansa a voz ao comentar as próprias limitações e medos surgidos nos processos em que se envolve. Reconhece o próprio valor ao mesmo tempo em que é o rapaz humilde que ao ser chamado da plateia para cantar com Phill Veras no último show do músico em São Luís, sentou-se no chão do palco para cantar com o amigo, antes da produção lhe trazer uma cadeira.
Sua narrativa pontuada por uma constante inquietação em saltar dos lugares de conforto que sua vida, diga-se de passagem mantida por uma família que o apoia financeiramente permitindo-o se dedicar plenamente a projetos pessoais,  é resultado de uma consciência de que a oportunidade é justamente para estudar e transformar o meio em que vive.
A longa conversa percorre a trajetória de uma vida narrada pelo próprio protagonista. Com suas escolhas narrativas, lembranças que opta por compartilhar, fatos cuja memória considera relevantes. É assim, através de um relato em primeira pessoa que conhecemos o que pensa o dono da história. 
E é com a história de Marcos Lamy, por ele mesmo, que o Ensaios em Foco dá continuidade à série de entrevistas Quem somos nós por nós mesmos, cuja primeira entrevistada foi a cantora e atriz corumbaense Paula MirhanDe agosto a dezembro, publicaremos conversas resultantes de encontros com pessoas que muito tem a nos contar sobre suas vidas e projetos. Sempre a partir de um relato pessoal fruto de um olhar afetivo sobre a própria trajetória. 



“All we need is… peace, love, music”   “Tudo o que precisamos é… paz, amor e música”

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