Aurora da Graça


Aurora da Graça
Há cerca de um ano descobri, através de uma resenha, uma escritora maranhense de nome poético e uma obra delicada e arrebatadora. Resenhas bem escritas tem o poder de envolver o leitor instigando-o a procurar pela obra resenhada. Comigo não foi diferente. Após ler o que Alex Sens escreveu sobre "O Tempo Guardado das Pequenas Felicidades" fiquei encantada pelos versos de uma poetisa chamada Aurora da Graça.  

Algum tempo depois, tive a honra de conhecer a autora pessoalmente e ganhar um exemplar de sua obra mais recente, a coletânea "O Tempo Guardado das Pequenas Felicidades" (2009) que reúne os três primeiros livros de Aurora - “Cavalo Dourado” (1977), "Nó de Brilho" (1981) e "Memória da Paixão" (1987) - às suas poesias mais recentes. 

Com a leitura dos versos distribuídos pelas mais de 300 páginas, percebi que a indicação encantada de Sens, que me despertara a vontade de ler o livro, era mais que uma ótima resenha, pois captara toda a poesia de Aurora compartilhando o sentimento que merece ser guardado através dos tempos.

Na entrevista abaixo, Aurora da Graça nos conta um pouco de suas inspirações e relação com a literatura e nos brinda com um conto originalmente escrito para a Revista Mescla.

1) Como foi o despertar para a produção literária? 

Desde o ginasial gostava de ler e copiava em um caderno os sonetos do livro de português da escola que trazia poesia. Mais tarde, escrevia um poema inspirada na paisagem da baía de São Marcos (São Luís), onde os barcos navegavam com suas velas coloridas. Bem depois, “ouvia vozes” que me ditavam versos. Achava que aquilo era uma coisa diferente e comecei a escrever o que me vinha à mente. Mostrei para o poeta José Chagas e com seu incentivo publiquei pelo SIOGE o primeiro livro – Cavalo Dourado. Com esse aval e, posteriormente, um cartão do grande Carlos Drummond de Andrade me deu “garantia” de poeta.

2) "O Tempo Guardado das Pequenas Felicidades" (2009) reúne poemas de três livros seus - "Memória da Paixão" (1987), "Nó de Brilho" (1981) e "Cavalo Dourado" (1977). Como surgiu a ideia de publicar um livro que fizesse um passeio poético pela sua produção?

Dois dos 3 livros publicados não me agradavam na forma. Editados de forma precária, sem os recursos de hoje. Como solução fiz uma leitura com o amadurecimento atual para reuni-los em um único volume. Uma espécie de testamento poético.

3) Tua poesia se alimenta da vida, extraindo detalhes do cotidiano que podem compor um belo álbum de recortes - tanto pela beleza com que retratas sentimentos quanto pela inquietude tão verdadeira e presente no viver. O quanto há de Aurora da Graça nos versos e o que busca a poeta ao versificar o que a inspira? Quais seriam os sentimentos que mais a comovem e inspiram para escrever?

As coisas e pessoas ao nosso redor sem que vejamos tem algo que nos atrai. Por exemplo, porta retratos empoeirados, uma cadeira, o chão, uma parede molhada, a sala escura, uma palmeira ceifada, enfim, o ambiente que nos acolhe oferece os elementos. As palavras que temos armazenadas se encarregam de expressar o que essas coisas e pessoas me dizem. Por isso que eu acho – ler é tudo. Nunca escrevi na alegria.

4) Como é teu momento de criação? Existe uma rotina estabelecida ou escreves de acordo com as ideias e inspirações que vão surgindo?

Sempre há uma palavra, uma situação que me comoveu, e muitas vezes a decisão de escrever, deliberadamente, como exercício.

5) Quanto ao conto “Caco de Espelho”, que publicamos no fim desta postagem, como foi criá-lo?

Uma noite, em 2009, eu me sentei para exercitar a escrita e puxei pela memória. Um devaneio, praticamente.

CONTO

“CACO DE ESPELHO”
(Aurora da Graça) 

Uma porta e todas as janelas fechadas. Nada de vento. Alguma fresta de luz somente. Vontade de voar. Chegar onde te encontras e arrancar todas as agulhas que te rasgam as entranhas, arrancar de teus pulsos, as agulhas. Sarar as feridas que tua alma abriu em teu corpo e te obrigam a dormir de dor. Chegar onde te encontras e abrir teus olhos fartos de sonhar, livrá-los da vertigem, livrá-los do que te ofusca. Mais que aprisionado pelas paredes, mais que aprisionado entre as portas fechadas, eu mesmo me aprisiono no desejo, mesmo que passageiro, de abrir tuas veias com um sopro emprestado de Deus e da Virgem de Guadalupe, para que renasças e me digas que já é hora de mudar as rédeas da vida. Esvaziar mais e mais o oco. Tratar a vida com os brilhos que se convertem em rumos de sonhos.

Abre-se o dia toldado pelas nuvens pesadas de ontem. Impossível saber o que pesa mais. Se a agrura que as palavras absurdas provocam ou este céu carregado e escuro. Desvio meu pensar para longe do agora. Outro tempo de festiva contemplação. Quando teus cabelos dourados brilhavam mais que ouro. Leves mais que plumas. Lisos mais que chuva pelos beirais. Outro tempo.

Dormes, talvez. Reviro os escombros do que hoje se revela tênue e difuso. Cavo o que se viveu. Revolver a memória de nossa vida feliz, no tempo das manhãs de sol e passeios nas barcas floridas pelos 180 km de canais que sobraram do lago Texcoco, soterrado para a construção da Cidade do México. A música original dos “mariachis”. Nossa felicidade era viver ao acaso das horas premiadas. Entre as águas e a ilusão. Tempo irreversível.
Ainda jovem arriei a bagagem do desencanto e procurei outra linha para contornar a vida. Foi difícil abrir os umbrais da minha alma. Dobradiças enferrujadas, trinco sem utilidade. As brechas de sua urdidura eram invisíveis. Achei as ferramentas e enfrentei o oficio de redescobrir o brilho dos olhos e o ânimo de enxergar o que era real e me desvencilhar do sonho imaginário e impossível.

Percebo que tudo não passou da invenção. Sonhei com “meus olhos costurados”, no dizer do jovem poeta. Estar só é chamar fantasmas, passado perdido. Preciso descansar o corpo. De olhos fechados por horas, muitas horas. O inesperado corte da luz elétrica escureceu mais o que em mim já era o breu. O corpo estirado pressente o quanto teria que esperar pelo dia. Talvez uma espera inútil. O desassossego se instala em mim. Na quietude da madrugada, a ausência de apelos é palco perfeito ao surgimento de ideias, sonhos. Nada acontece. O breu impede. Há o redemoinho na alma. Não há desejo. As imagens se sucedem no meu pensamento. Imagens retalhadas, confusas, quase obscuras. Movem-se. Torvelinho. Meu espírito não suportará por muito tempo a movimentação pictórica de meus pensamentos, mas eu não ouso impedir. Permaneço estático à mercê do que poderá vir e que não sei nem posso imaginar. Enganei-me. Tudo o que imaginei sobre esta nova vida para nós não passou de ilusão. Permaneces absorta e mais alheia ao que eu presumia ser normal e possível. Viver o dia e a noite enfrentando os acontecimentos com normalidade. Preciso entender o que meu pensamento fustiga. As lembranças, vivências e fantasias. Há em mim o desejo de estimular os recônditos da memória, espaços construídos de silêncio. E depois? Se eu tiver medo e não souber o que fazer com os segredos descobertos? Pensamento, voz, esquecimento, lembrança ou nada.

Logo será dia. Abrirei a porta e as janelas. Escancaradas para o sol. Liberdade para a inundação da claridade. O vento, nos quintais, dará voltas nos lençóis dos varais. Diante da janela a paisagem. A paisagem não indaga, tampouco quer ouvir qualquer palavra ou história de amor ou ódio que eu possa ou queira relatar. Qualquer história de medo ou de aventura. Qualquer história de tédio ou benevolência. Os acontecimentos do passado escapam da memória. Tomam corpo e desfilam na passarela desta recordação. Há um hiato entre nós. Eu também separado de mim. Ser feliz, às vezes, é só lembrar.

Aurora da Graça Almeida é poeta e professora, natural de Rosário-MA. Mantém ainda o blog “Nó de Brilho” (http://debrilho.blogspot.com.br/) com poemas, fotografias e recortes poéticos. 

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