Sobre os livros "O Frágil Toque dos Mutilados" de Alex Sens e "Cafés Amargos" de Sabryna Mendes


Sobre leituras que alimentam a fome de livros e esperança

De tempos em tempos alguns livros, dentre os muitos que leio em sequência, se descolam da lista de livros lidos para brilhar entre os que mais me marcam profundamente. É curioso notar como, não raro, são poucos os livros que consigo pinçar entre dezenas num espaço de meses, alçando-os ao posto de livros favoritos do ano. E aqui nem se trata exatamente de eleger um livro como o melhor do momento, mas do livro se revelar precioso entre os colegas de estante, selecionado aleatoriamente para leitura ou mesmo posto em minhas mãos graças a algum encontro inesperado. É por falar diretamente comigo num momento especial da minha experiência de vida sensível que alguns livros me fisgam em detrimento de outros. Como se soubessem das minhas marcas, tocam onde fui mutilada. E como bálsamo revelam-se plenamente adequados ao cuidado e companhia que demando no momento. 

Nesse contexto, trago para cá algumas impressões sobre duas leituras recentes que dialogaram de forma especial comigo e merecem atenção no cenário da literatura contemporânea. A saber: O Frágil Toque dos Mutilados (Autêntica, 2015) de Alex SensCafés Amargos (Aquarela, 2015) de Sabryna Mendes.

Coincidentemente, tanto O Frágil Toque dos Mutilados quanto Cafés Amargos são construídos valorizando a culinária como elemento poderoso na ambientação e decodificação de sentimentos. Tanto Alex Sens quanto Sabryna Mendes inserem em seus enredos com propriedade - diga-se de passagem - comidas e bebidas como itens significativos para compreender os contextos e fases em que vivem seus personagens. No romance de Sens, as refinadas refeições compartilhadas pela família dos personagens Orlando e Magnólia, os tipos de preparo dos pratos descritos, o vegetarianismo e a espinhosa relação dos personagens com o álcool dizem muito na trama. Assim como no livro de Sabryna, a transição entre adoçar ou não o café demarca a fase da vida em que o escritor Tomás está. Quando um reencontro inesperado passa a preencher de alegria os dias até então tristes de Tomás, o escritor sente a diferença nas refeições diárias cuidadosas que lhe são preparadas. O café quente, o almoço cheiroso, o vinho compartilhado... Tudo que alimenta o corpo e a alma dos personagens está diretamente relacionado com quem eles são e como vivem. 

Não foi por acaso que o romance de estreia de Alex Sens recebeu em 2012 o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria Jovem Escritor Mineiro. O Frágil Toque dos Mutilados é denso, seguro e elegante. 

No livro, somos convidados a embarcar em um trem com o casal Magnólia e Herbert rumo a uma cidadezinha litorânea para um julho de reencontros afetivos com suas respectivas aproximações, toques e choques. Ao chegarmos numa cidade não nomeada, somos recebidos por Orlando, irmão de Mag, que nos leva para sua casa em uma praia de aspecto desolado onde encontramos seus filhos Muriel e Tomas. Paira sobre o trio anfitrião uma atmosfera de luto não totalmente dissipada, que logo assombra veladamente os visitantes, entre eles nós leitores. Rapidamente sou fisgada pela forma segura com que Sens constrói imagens, ambientes, cenas e diálogos. Sua prosa densa é envolvente de modo inescapável. Gosto da forma como cada linha do romance se desdobra vagarosamente, como um trem no trilho certo. A leitura flui no ritmo ditado pelo autor, numa competente forma de nos manter atentos à sua narrativa sem chance de desvios. 

Alex Sens
Dia após dia de uma reunião familiar ancorada em sentimentos represados e por dizer surgem muito bem marcados pela escolha do autor em estruturar o romance em três partes, nas quais os dias corridos da visita de Magnólia e Herbert são narrados por capítulos. Nesse ponto se revela a capacidade de Sens em amarrar cada ato do enredo em desdobramentos precisos. E este é um ponto muito positivo porque o tempo da estória aparece como um elemento perceptível, que nos reserva tal qual na vida fora das páginas todo o suspense inerente ao seu decorrer. A cada virada de página não tenho a mínima ideia de para onde Alex Sens me levará e chego a espaçar meu tempo na companhia do livro com medo do que possa estar espreitando Magnólia - e a mim - nas próximas páginas. Felizmente, fico sabendo que o autor planeja uma continuação envolvendo os personagens de seu romance de estreia, o que me alivia pela possibilidade de reencontro com Magnólia e os seus e justifica meu retorno urgente para as páginas de O Frágil Toque dos Mutilados, cuja conclusão da leitura não desaponta.

Com este livro estabeleço um encontro apropriado. Leio-o em julho e rapidamente sua leitura desponta como a melhor do meu impronunciável 2015 de até então. Talvez porque meu ano até ali tenha também me mutilado, identifico-me desde o princípio com sua trama, seus personagens, sua melancolia, sua intensidade, suas quase tragédias e seus revelados desastres.

Então chegamos em setembro, mês que me reaproxima da minha própria literatura, através do convite do Clube do Livro do Maranhão para integrar com meu Vila Tulipa (2007) a mesa Autores Contemporâneos no cenário nacional da publicação de livros, na programação da Feira do Livro do Shopping da Ilha. Eis que ao participar do belo evento divido mesa com a jovem escritora maranhense Sabryna Mendes e finalmente tenho acesso a um exemplar de seu romance de estreia Cafés Amargos (Aquarela, 2015)vencedor do Prêmio Aluízio Azevedo concedido pelo 35º Concurso Literário e Artístico Cidade de São Luís, em 2013. 

Curiosa com a sinopse do livro, coloco-o a frente das leituras que venho fazendo e qual não é minha surpresa ao ser fisgada por uma ótima trama que me faz lê-lo inteiro em um dia?

Cafés Amargos é uma bela narrativa da inspiração, que surpreende ao escapar do óbvio enredo sobre um escritor que perde o jeito para escrever após se deslumbrar com o sucesso. A prosa leve de Sabryna Mendes é elegante e cumpre com louvor a missão de enredar o leitor no enlace entre as histórias de vida de Tomás Pacheco, um escritor amargurado e Marina, uma jovem leve e sonhadora. Com habilidade e talento, Sabryna entrelaça momentos cruciais do passado e do presente dos protagonistas prendendo o leitor página após página. 

O que mais me comove em Cafés Amargos é a delicadeza com que a autora constrói uma estória de amor e amadurecimento. Aos 16 anos, Tomás trava um diálogo breve e poético com a filhinha dez anos mais nova dos vizinhos. A garotinha muda-se em seguida com sua família e embora Tomás perca contato com eles, a pequenina Marina não deixa de habitar a imaginação do jovem aspirante a escritor. 


Sabryna Mendes
Tanto que Tomás escreve seu primeiro livro baseado na inspiradora conversa com Marina e obtém muito sucesso com a obra. Talentoso, escreve um segundo livro que também é bem recebido pelo público e pela crítica. O sucesso, contudo, traz ganhos financeiros que afastam Tomás de seu olhar sensível e de seus relacionamentos familiares. Deslumbrado com a fama, o escritor se perde de si e toma um rumo que envolve bebedeiras, má alimentação, festas, relacionamentos superficiais e pouquíssimo afeto. Nesse contexto, escreve um terceiro livro que já não alcança a qualidade dos dois primeiros e vê sua promissora carreira desmoronar, levando-o a perder tudo e se tornar um sujeito recluso e amargurado.

Por força do destino a inspiração perdida retorna à vida do escritor quando Tomás se muda para um prédio modesto e insuspeito. No lugar, conhece uma moça que demostra interesse por sua solidão. Os dois se aproximam e firmam uma amizade que aos poucos se transforma em um relacionamento amoroso. A trama que se desenrola a frente revela uma interessante história de amor, com seus conflitos e tensões, descobertas e encantamentos. Nesse sentido, Sabryna Mendes apresenta um livro sensível que passeia bem entre a poesia e a realidade, com Tomás e Marina formando um par crível e convincente.

Ao fim da leitura, Cafés Amargos me transporta para um território que restaura o olhar amoroso pelo mundo e pelas pessoas e convida ao reencantamento da vida. Ameniza a dor de existir. 

Penso no poder de toque de um livro, que pode tanto fazer gritar nossas feridas quanto as cicatrizarem (ambos processos importantes), e só então percebo a relação entre as fomes que sinto e a ênfase dada pelos autores aos alimentos que nutrem seus personagens. É que assim como o que é posto na mesa, certos livros vão parar nas nossas estantes para alimentar quem os leem. De acordo com a fase da vida em que estamos, certas leituras mostram-se capazes de cuidar de nós, atendendo aos cuidados que demandamos e revelando com quais crenças iremos, no devido tempo, nos religar. 


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