Sobre Black & Brack

São Paulo, março de 2015. Noite chuvosa de sábado. Estou em um táxi com Talissa indo da Pompéia à Rua da Consolação quando paramos em um sinal. Um carro para ao lado do nosso. Talissa somente sussurra meu nome em tom de assombro. Olho pela janela e vejo o condutor do veículo ao lado. Pisco incrédula e ele continua lá. A barba ruiva por fazer no rosto conhecido. Dani Black. O sinal abre e ele se vai mais rápido do que apareceu. 
Dani Black (Foto: Paulo Bueno)

É como aparição no deserto que o compositor de “Miragem” curiosamente surge diante de nós na única noite em que passamos na capital paulista. Recupero tal curiosidade como preâmbulo para exemplificar a capacidade desse jovem cantor, compositor e instrumentista em provocar arrepios. Seja por sua aparição relâmpago, seja por sua música de alta qualidade.

O exemplo musical é o novíssimo Dilúvio (2015), disco lançado por Dani Black no início de agosto que atesta por inteiro a vocação do músico em conceber hinos capazes de elevar ao patamar do sagrado sua percepção sensorial extremamente apurada do nosso tempo.

Totalmente autoral, as onze canções do disco produzido por Conrado Goys em coprodução com Dani passeiam certeiras pela poesia contundente, profunda e madura do músico de 27 anos, filho de Tetê Espíndola e Arnaldo Black. 

Capa (Foto: Paulo Bueno)
“Eu sou maior do que era antes/ Estou melhor do que era ontem/ Eu sou filho do mistério e do silêncio/ Somente o tempo vai me revelar quem sou”, anuncia Milton Nascimento logo nos primeiros versos de “Maior” (Dani Black), última faixa de Dilúvio (2015). E se parece estranho falar de um disco citando a última faixa cantada na voz da participação especial – ainda que seja uma participação do naipe de Bituca – não, não há nada que se estranhar que estes versos, cantados por esta potência, tenham sido escolhidos para proclamar com justiça o que se encontra no novo disco de Dani Black. 

“Maior” vem para selar com uma participação de peso o ótimo trabalho de Black em investigar a alma humana e sua capacidade de evolução ao longo do tempo interno de cada um. É talvez, a faixa mais espiritual do disco, que traz ainda hinos como “Bem mais” (“Você vai ver não deve ser assim tão longe/ Esse lugar que esconde o que sonha encontrar/ Talvez até seguindo a pé pelo horizonte/ Alcance o bonde e o bom de estar nesse lugar/ Vai se sentir tão leve em paz/Mas muito em breve vai querer bem mais”) e “Só sorriso” (“Quando eu olho pra você/ Vejo silêncio e lágrima/ Incrustados num mundo de solidão/ O que se mostra o que dá pra ver não é lástima/ Do que de fato habita o seu coração”). Perspicaz e adulto, Dani vai das lânguidas “Dilúvio”, “Seu Gosto” e “Ú” às divertidas “Fora de Mim” e “Ganhar dinheiro”, passando pelas adoráveis “Linha Tênue” e “Areia”. Sobra espaço até para um antídoto para quem já fez papel de trouxa na realista “Não, não, não” (“Não vou, não vou ficar não/ Aqui esperando que você me faça em pedaços e depois se sirva/ Não vai não vai mudar não/ As pessoas melhoram, as pessoas pioram, as pessoas não mudam”).

Sozinho ou em parceria, não é de hoje que Dani Black entrega ao mundo letras interessantes, revestidas por grandes melodias e interpretações. Já o fizera antes em “Marcas” (“as minhas marcas/ os meus valores/ as minhas armas de colorir/ são como preces presas ao corpo/ provando do gosto do que já vivi”) em parceria com o igualmente inspirado Pedro Altério; em “Oração” (“peço aos céus para me proteger/ eu não hei de ceder/ ao vazio desses dias iguais/ mal em mim nunca há de fincar/ mel em mim nunca há de findar”) interpretada por Ney Matogrosso no disco Atento aos Sinais; e mais recentemente com “Dez dias” (“eu queria dormir dez dias inteirinhos/ e durante esse sono o mundo podia explodir/ pra que quando eu acordasse descansada/ não iria restar absolutamente nada/ nada pra sentir/ nada com o que me preocupar/ nada pra ferir ou pra me tirar do sério/ não iria pingar uma gota do mistério/ que dói esse mistério de existir/pra quê essa mania de insistir/ na busca incessante por saber?/ se corre o grande risco de não sermos/ dói esse mistério de existir/ porque essa pergunta a persistir?/ que rumo delirante é morrer?/ se corre o grande risco de não sermos nada/ corre o grande risco de haver mais nada/ pra sempre um dedo em riste por sabermos nada") na voz poderosa de Duda Brack em seu É (2015)

Duda que inclusive é outra potência que merece há tempos que eu escreva sobre. Pago agora esta dívida comentando finalmente seu primeiro e aguardado disco É, lançado no primeiro semestre deste 2015. 

Capa (Foto: Flora Borsi)
É (2015) apresenta todo vigor interpretativo da gaúcha residente no Rio de Janeiro Duda Brack. Aos 21 anos, a moça presenteia ouvidos atentos com um disco cuja reunião aparentemente econômica de oito canções se revela oferta generosa após uma audição cuidadosa. Duda se cerca dos melhores compositores de sua geração e veteranos para conceber um disco de estreia coeso e cheio de personalidade, que inscreve seu nome de maneira inquestionável entre os das nossas mais raras forças da natureza.

Produzido por Bruno Giorgi, É conta com as participações especiais de Dani Black e Lucas Vasconcelos e traz composições de César Lacerda, Celso Viáfora, Caio Prado, Élio Camalle, Dani Black, Paulo Monarco, Paulo Novaes, Posada e Taís Feijão. A banda que acompanha a voz e o violão de Duda nessa empreitada é formada por Barbosa (bateria, percussão e coro), Bruno Giorgi (guitarra, baixo, vocais e coro), Gabriel Ventura (guitarra e coro) e Yuri Pimentel (baixo elétrico e coro).

Para quem conhece os compositores, ouvi-los na voz de Duda Brack se transforma em um interessante exercício de reconhecê-los verso após verso e nesse sentido, não há como não sentir a espiritualidade de César Lacerda em “meu corpo é o templo sagrado, intocável/ eu sou a fé/ fera, bela, espiritual/ e o discurso político já não me atinge mais/ sorrio dentes cortantes/ e grito o mais alto que posso/ eu sou o traço que emerge e torna possível sonhar” (“Eu sou o ar”); a simplicidade desconcertante de boa de Paulo Novaes “se você não me quiser me diga logo/ diga tudo que quiser, mas diga agora/ eu não gosto de esperar prefiro aceitar o não” ("Te ver chegar"); ou a poesia poderosa de Paulo Monarco e Élio Camalle no ótimo conselho “meu amor não adianta tanto drible tanta finta/ pois o amor quando desbota/nem mesmo mil latas de tinta” ("Lata de tinta").

A grande força de É reside na entrega desmedida de Duda Brack à canção, respeitando a
Duda Brack (Divulgação)
alma dos compositores posta em cada letra sem se render à tentação de se contentar em somente emprestar sua voz marcante às palavras e verdades de outras pessoas. Duda Brack não se enquadra no tipo de intérprete que empresta voz para vestir canções, embora muitos o façam com correção. Quando alguém veste uma canção cedida, sempre corre o risco de deixar visíveis folgas, espaços do corpo do outro que não se moldam ao deste alguém. No caso de Brack, no entanto, tal risco inexiste porque a artista simplesmente incorpora os versos que canta. Transforma-os na própria pele. E nos surge cristalina.
É arrebatadora. 

Nos versos declamados com uma voz de pureza quase infantil ao fim do disco, Duda Brack fala de seu coração “cheio de belezas acesas a explodir” e de seu desejo de “violar o infinito e emergir no grito” ao “arregaçar o coração à vida”. 

Após ouvi-la, não me restam dúvidas de que a bela missão dada por Duda a si mesma foi pra lá de cumprida.

Para conhecer, baixar, ouvir


Comentários

Postagens mais visitadas