Alice Ainda, a Nathalia de agora

por Talita Guimarães

Quando comecei a ouvir Marcos Magah há uns dois anos, alguma coisa me pegou naquele som e me prendeu na frequência daquilo que eu ouvia. Magah fisgava. O som batia. Até hoje não sei explicar.

Ou melhor, não sabia.

Capa: Alice Ainda (2015)Fotografia: Laila Razzo
Arte: Laila Razzo/João Almeida
Ao ouvir Alice Ainda (2015), segundo disco de Nathalia Ferro recém-disponibilizado para download gratuito, percebi que o mesmo fenômeno voltou a ocorrer comigo. Alice Ainda dá onda. E nem é só porque tenha forte pegada no reggae, mas porque apresenta uma Nathalia Ferro, sob a produção musical caprichosa de Adnon Soares, bastante afinada na entrega entre voz, composição e interpretação. Tudo em Alice Ainda me faz visualizar a artista, com quem estive pessoalmente raras vezes e pouco conheço fora dos palcos. É que faixa após faixa, Nathalia não só desponta mais madura e interessante musicalmente, como também se reafirma como intérprete vigorosa e compositora criativa. Sua voz, que me causou estranhamento quando a ouvi pela primeira vez há alguns anos, hoje me chega como uma agradável e inconfundível marca registrada. Muito bem empregada junto ao instrumental dançante e rico de Alice Ainda, a voz de Nathalia Ferro é o elemento responsável pela sensação boa de flutuação que me vem ao ouvir seu mais novo trabalho.

Composto por doze faixas, entre inéditas, releituras e regravações, Alice Ainda agrupa um conjunto temático interessante por sua rara sensibilidade. Consegue falar de temas inescapáveis como amor e desejo sem cair no terreno minado das obviedades; toca em feridas como a exclusão social e a pobreza sem soar panfletário; regrava com doçura e respeito sucessos de compositores regionais; e ainda lança ao mundo gravações inéditas das safras mais recentes de artistas locais.

“Vila Esperança” (Nathalia Ferro) abre o disco já convidando para o embalo. A letra forte, contudo, merece atenção para as entrelinhas. Fala de reafirmação diante de uma sociedade preconceituosa e da necessidade de combater o que insiste em nos acuar dia após dia em cada canto da cidade. O eu lírico da canção, segundo Nathalia uma travesti, canta de dentro de um ônibus, por exemplo. Na sequência, Nathalia empresta a voz a um eu lírico masculino para cantar uma desilusão amorosa na lânguida “Neguinha” (Nathalia Ferro).

Fotografia: Laila Razzo
“Como qualquer chiclete” do maranhense Phill Veras ganha uma radiofônica versão na voz de Nathalia. Conhecida de alguns shows do próprio Phill, a canção ainda não tinha sido gravada em disco. Na sequência, Nathalia Ferro regrava “Ana e a lua” (Betto Pereira) com doçura. Já “Maria de Jesus” (Beto Ehongue) desponta trazendo em seu arranjo toda a gravidade da denúncia de sua letra, de cunho social. A levada aparentemente animada não encobre o sofrimento da personagem que precisa catar comida no lixo para alimentar sua família, cantada com uma voz carregada de dor em uma ótima interpretação de Nathalia. “O que não é de mim” (Marcos Lamy/Hermes Castro) segue como mais uma acertada regravação em Alice Ainda. Não relê com grandes alterações a versão original na voz de Lamy registrada em Eu tô é tu (2013), mas faz bonito em um arranjo preciso que cresce nos momentos certos e imprime atitude à mensagem da nova geração de músicos ludovicenses. 

Caindo mais para dentro do disco, somos alcançados pela inédita “Música do sereno” que traz a inteligente poesia (“transcende ao tocar o chão”) de Paulo César Linhares da já saudosa Pedeginja para o disco e é uma forte candidata ao repeat pela levada gostosa casada com a voz suavizada de Nathalia no encontro com o vocal masculino de Lucas Maciel. 

Dentre as faixas mais mornas, “Sem pressa” (Marceleza) convida para desacelerar enquanto “Porcelana” (Laila Razzo/Nathalia Ferro) dá voz a uma gana sedutora.

“Te deixando aos poucos” (Adnon Soares/Leo Del Nery), uma das poucas faixas lentas de Alice Ainda, canta um ensaio de despedida. Já em “Estranho Seu” (Adnon Soares/Nathalia Ferro), versão em português de “Strange of Mine” da banda maranhense Soulvenir, Nathalia canta com Adnon numa das faixas mais oníricas do disco. 

Fechando Alice Ainda, “A queda” (Rommel Ribeiro/Nathalia Ferro) retoma a levada de reggae que sustenta a maior parte do disco para cantar uma ode ao processo criativo e ao espírito de desprendimento que a arte requer. 

Fotografia: Laila Razzo
Ao divulgar este que é seu segundo trabalho – em 2013, Nathalia Ferro lançou o EP Instante, também com direito a download gratuito – a cantora considera que Alice Ainda comunica sua persistência em trilhar o caminho artístico. E vai mais fundo: entrega um disco com acabamento profissional – ainda que o disco físico ainda não esteja disponível - como resposta a todos que desacreditaram de sua capacidade ou da viabilidade do fazer artístico no cenário local. 

Enquanto gesto de persistência, Alice Ainda (2015) chega em boa hora: sopra frescor ao cenário da música atual e convoca à resistência. Pois não é pela beleza que resiste pelo mundo e transcende frivolidades que suportamos a realidade? Não seria graças a nossa capacidade de sonhar e fabular que conseguimos seguir em frente muitas vezes? Não tem lá sua parcela de mérito na nossa salvação diária, a arte com todo seu arsenal de sonhos e desejos muito humanos?

Se sonhadora, Nathalia Ferro já concebe um álbum com tanto há dizer, não há mais o que questionar, tampouco criticar. Resta-nos somente fazer um pedido: acorde não, Alice, que é de sonhos lúcidos como os teus que nossa gente precisa.

E meio que em resposta, Nathalia Ferro nos tranquiliza amarrando seu modus operandi em um só verso, cantado é claro: “ter que me atirar ao vento é ato de respeito à minha própria natureza”

____________

FICHA TÉCNICA:

Alice Ainda - Nathalia Ferro
Produção Musical: Adnon - CasaLoca
Produção: Nathalia Ferro
Fotografia: Laila Razzo
Arte: Laila Razzo, João Almeida
Mixagem: Memel Nogueira - Estúdio Andar de Cima
Masterização: Felipe Tichauer - Red Traxx Music
Início das gravações: maio/2014
Lançamento: abril/2015

Músicos: 
Adnon: Guitarra, violão, teclado, sintetizador, vocalizes
Sandoval Filho: Bateria
Marlon Silva: Baixo
João Simas: Guitarras em Ana e a Lua, Maria de Jesus e O que não é de mim
André Grolli: Baterias em Ana e a Lua, Maria de Jesus e O que não é de mim
Memel Nogueira: Participação Guitarra Música do Sereno

Comentários

Postagens mais visitadas