#VempraPasárgada!

A cidade-poema de Manuel Bandeira inspirou o nome de uma iniciativa musical que elabora o cotidiano com perspicácia, fazendo dialogar irreverência e sensibilidade com raro primor. Diante de trabalho musical assim, mal dá para resistir ao universo sonoro criado pela Filarmônica de Pasárgada. Os dois excelentes discos da banda convidam para uma criativa viagem. Vamos nessa?

Por Talita Guimarães

A banda tem toda a aura de quem emergiu de um universo paralelo musicalmente muito mais interessante, desses gestados por mentes inventivas e sentidos atentos. Não é por acaso que seu som cunhado pela imprensa como “experimental” e “vanguardista” soa inusitado para o ambiente de onde vem. Originalmente concebida nos idos de 2008 por então estudantes do curso de Música da Escola de Comunicação e Artes – ECA da USP, onde a formação musical é erudita, a Filarmônica de Pasárgada floresce popular.


Influências
Foto: Bruno Naoki Okubo

A cara de Pasárgada
Montagem: Inês Bonduki e Marcelo Segreto
Formada atualmente pelos músicos Fernando Henna, Gabriel Altério, Ivan Ferreira, Marcelo Segreto, Maria Beraldo Bastos, Migue Antar, Paula Mirhan e Sérgio Abdalla, a banda produz um som bastante peculiar, das composições ao resultado sonoro, que bebe nas fontes da vanguarda paulistana de Luiz Tatit e Ná Ozzeti e do tropicalismo de Tom Zé, entre outros. Desde o disco de estreia “O Hábito da Força” (Coaxo do Sapo, 2013) que Marcelo Segreto e Cia esculpem o rosto particular da banda com canções que fisgam da contemporaneidade – predominantemente urbana – histórias, olhares, situações e sentimentos. Para vestir versos que vão de um cínico “eu posso ser o plano b/ que você pensa sem saber/ eu sou facim” (“Plano b” - M. Segreto) ao refinamento de “nossa sombra abraçada em si/dança no silêncio/valsa pelo asfalto/desatenta ao tempo” (“Saudadeando” – M. Segreto), passando pelo ótimo funk “Conceição”, cuja letra - com o perdão do trocadilho - é toda boa (“De repente um pé na porta/pé de cabra cadabra/ me tirou da cama me tirou da barriga/do nada/Despertador/Cesariana (...) Tropeço pelo apartamento/sem cordão desacordado/ vou de elevador escada abaixo ou no vento/ Parto/ Despertador/Cesariana (...)Destino com destino/espremido entalado enlatado na lotação/ Morrenasce lá no Terminal Conceição/ No ventre do metrô/De estação em estação/ O aborto da população” M. Segreto), a banda se vale do conhecimento obtido na academia e de suas respeitáveis influências para dar um corpo extremamente rico às suas composições críticas, divertidas, inteligentes e acessíveis. É realmente como se a cidade-poema de Bandeira tivesse ganhado uma banda para completar o cenário ideal.

1º disco
Se em “O Hábito da Força” somos apresentados a doce sagacidade das letras de Segreto - responsável por fundar o grupo e compor boa parte das canções, além de tocar e cantar – interpretadas com precisão por Paula Mirhan, cuja voz por sua vez é acompanhada por instrumentistas competentes, com espaço até mesmo para a presença de um fagote na formação original da banda, no novíssimo “Rádio Lixão” (Coaxo do Sapo, 2014) tudo o que agrada, diverte e faz pensar no primeiro disco é preservado e vai além. Novamente sob produção musical de Alê Siqueira, o segundo disco da Filarmônica, que chega ao público este mês, fornece toda a graça do começo com uma dose renovada de ousadia. O modus operandi do Segreto compositor está todo lá, em sua melhor forma: poético e sagaz para cantar obsessivamente e de vários ângulos possíveis o amor não-correspondido, como em “Blá blá blá” (“Tudo que eu te canto não te toca/Tudo o que eu te toco não te encanta”) que conta com a espirituosa participação de Tom Zé ou em “Naquele sonho” (“Vou dançar, sim, todo o salão/E o céu solto a girar/Vai que assim tão longe do chão/Você seja meu par”) em parceria com Guilherme Meyer. As citações e os tributos também marcam presença: depois do grave “Enfartando Tinhorão” (“Tudo tudo o que me vem no ouvido/Mas eu não uso fantasia de bamba/ Só porque o samba tá sapucaído/ Ok, aceito o argumento/ Mas a rapaziada quer voltar pra Lapa/ Botar chapéu de palha e paletó de linho/ Eu vou tirar meu bloco da avenida/Cansei de tocar surdo e gente endurecida”) do primeiro disco, Segreto nos sai com um lindo “Estudando Tom Zé” (“Foi o leite de Maninha?/ Foi a coca? A bile negra?/Foi cachaça? Foi veneno?/ Ninguém sabe com certeza/ O diabo do segredo/ Só quem sabe é Deus e Neusa”).

As gratas surpresas do disco se dividem entre o declarado interesse de Segreto pelo funk carioca e as ótimas colagens intertextuais que dialogam com o cancioneiro brasileiro. Do flerte com o funk resultam pelo menos duas faixas com tamborzão no disco: a desbocada e crítica “Fiu fiu” (“Quando eu passo você olha/ assovia faz fiu fiu/ Todo dia, toda hora/ Vai pra puta que o pariu/ (...) Na muvuca do metrô/ no abuso do busão/ lá no bonde minha vó/ tira o olho/ tira a mão M. Segreto) e o passeio sonoro pela “Muro muro Morumbi” (“Tem chorume e lagrimá/ tem salário minimú/ Pinheirinho Africá/ Tem cartão de creditú”), dedicada para Chico Buarque no encarte do disco, que informa ainda que a música foi composta por Julinho Addlady, no que parece ser uma brincadeira com o heterônimo de Chico Buarque chamado Julinho de Adelaide. Em entrevista ao Programa Cultura Livre, Marcelo Segreto contou que em janeiro de 2013 ele conheceu um designer chamado Júlio Soares (que assina Julinho Addlady) em Cajaíba, uma praia em Paraty-RJ. Conversa vai, conversa vem, após o retorno de Segreto para São Paulo, Julinho enviou a letra recitada para a turma de Pasárgada e nasceu a parceria que resultou no funk "Muro muro Morumbi".


2º disco
Estreando uma composição em parceria com Paula Mirhan, Segreto divide com ela ainda o vocal na bela e intertextual “Mil amigos”, dedicada para Caetano e Gal em uma amostra do que a sensibilidade da dupla pasargadense é capaz: Você/ Eu sei/ Precisa se lembrar/ Precisa saber/ De quem?/ O que?/ (...) Cidade medo mais de mil amigos/ E um refrão a palpitar/ Na minha camisa/ No vento, no anular/ No fone de ouvido/ Na foto, no toque do seu celular”.

Para encerrar a sessão cantoria comentada – porque se deixar enveredo pelas três dezenas de músicas fornecidas pelos dois discos da banda juntos – vale destacar ainda duas faixas de “Rádio Lixão”: “Amor e Carnaval” (“E tira o pé do chão/ E põe o pé no pufe/ Afunda no sofá/ que o pijama é abadá” – M. Segreto) e “Ela é dela” (Todo mundo quer saber/ O que é que a fulana tem?/ Nunca foi Teresa/ Nunca foi da praia/ Não é de ninguém/ Ela é dela”). Na primeira temos um axé digno de injetar alegria no bloco dos empijamados, aqueles seres tipo eu que durante o carnaval ficam zanzando entediados dentro de casa. Já em “Ela é dela” destaque especial para a sonoridade criada em torno da interpretação de Mirhan, que reproduz na voz os trejeitos das cantoras antigas de rádio e nos faz crer ouví-la no embalo de um bondinho. Uma delícia.

Em comum, “O Hábito da Força” (2013) e “Rádio Lixão” (2014) tem ainda a mesma quantidade de faixas (15), o selo do estúdio Coaxo do Sapo de ninguém menos que Guilherme Arantes e o projeto gráfico assinado por Guto Lacaz, cuja arte produzida para os dois discos dialoga em detalhes com a música pasargadense, sejam pelas fotos bem-humoradas ou a inversão de letras e números no encarte do primeiro disco como pelas montagens que brincam com o rosto da banda no segundo recém-lançado.
Foto: Edson Kumasaka


Para sacar o som da Filarmônica de Pasárgada é possível adquirir os discos físicos na lojinha no site da banda ou ainda baixar gratuitamente  “O Hábito da Força” (2013) na Musicoteca. Vale também assistir a apresentação na íntegra do grupo no Estúdio Showlivre, disponível no Youtube (vídeo abaixo).


Para quem vai estar em São Paulo no sábado 23/08/2014, fica a preciosa dica: lançamento do segundo CD da Filarmônica de Pasárgada, “Rádio Lixão”, com participações de Luiz Tatit, Ná Ozzetti e Guilherme Arantes às 21h, no Auditório Ibirapuera.


Atualizada em 02/09/2014, às 17h40.

Comentários

Postagens mais visitadas