Logradouro 475

por Talita Guimarães

A cada viagem, uma viagem. Ao cortar o país por alguns abraços, sorrisos e flores pode-se ganhar para além da experiência de deslocamento no espaço-tempo. Viajar não só pela geografia de um país, mas pela própria história de vida. Assim foi minha última ida ao Rio de Janeiro. Uma cruzada pelo meu mapa familiar e afetivo.

A viagem começa pelos sentidos. Fecho os olhos e escuto nos fones de ouvido “Logradouro”, canção de Kléber Albuquerque e Rafael Altério, na sensível interpretação de Pedro Altério (voz) e Bruno Piazza (piano). E então me vem a cena completa: os primeiros raios de sol da manhã penetram solenemente pelas venezianas da janela de madeira pintada com tinta cor de creme. Pequenina, sinto o cheiro do carpete marrom bem próximo a mim, que estou deitada em um fino colchonete. A melodia cresce com a chegada de mais luz e calor à medida que o sol preenche o sobrado. Amanhece no Estácio (Rio de Janeiro – RJ). E eu acordo na casa de minha avó materna. Tenho as idades de cada visita guardada na memória. 5, 9, 14 anos.

Enquanto a música dura, sigo de olhos fechados, apreendendo por todos os poros a sensação de estar ali. Por algum motivo desconhecido a música me transporta para dentro das minhas memórias de infância. Posso levantar devagar e andar de meia pelo quarto. Um pisar macio que não evita o ranger das tábuas sob o carpete. Ganho o corredor e avisto lá no final a luz do sol banhar a cozinha. Há um rádio ligado e algum movimento ali. Um cheirinho de café com leite me alcança. Atravesso a casa, passando pelas portas de mais dois quartos onde tia e prima dormem ainda. Chego à sala e percebo uma luz escapulir pela porta entreaberta à minha esquerda. Vem do altar onde minha avó pôs os santos e as santas de sua devoção. A vela sempre acesa aquece a fé da família.

Derramo o olhar ao redor. Vejo porta-retratos com tios e primos sorrindo na estante. Reconheço meu próprio sorriso em um quadro na parede, onde estou acompanhada de minha irmã caçula e meus pais. Sinto-me parte daquele lugar. Então sigo em frente.

De repente o chão muda. Da maciez quente do carpete para a rigidez fria do piso gasto da copa-cozinha. Não me incomodo. Dou mais alguns passos e chego ao coração da casa. É na cozinha que alimentamos toda a nossa fome. De comida e afeto. Afinal é ali que me sento para observar o preparo de cada refeição e é onde ouço longas histórias de família, atualizando-me das notícias de todos, sopradas aos meus ouvidos misturadas ao vapor do feijão.

Tenho 23 anos recém-completados agora. E estou naquela cozinha pela primeira vez em oito anos. O rádio está em silêncio. Não há panela no fogo. Uma sensação de ausência me invade. Sentada de costas para o fogão olho para os lados inquieta. É, pela primeira vez, estranho estar ali. Estranho estar em um lugar em que ela não mais está. É a primeira vez que piso no sobrado 475 após a partida da dona da casa, minha avó. E não preciso descalçar os sapatos para sentir a temperatura do chão. Já nem há mais chão. Então choro.

A música acaba. Abro os olhos. Estou na casa em que moro com meus pais e minha irmã em São Luís-MA. O ano é 2014. Tenho 24 anos e sete meses. E estou às vésperas de reembarcar para o Rio.

Coloco Pedro Altério para cantar novamente. Torno a fechar os olhos. Respiro fundo e é o cheiro do carpete que me vem. Vou cerrando a vista míope para o borrão cor de creme à minha volta. Minha coluna está repousada em um colchão amparado pela gaveta baixa de uma bicama. Estou coberta por um lençol amarelinho. Abro totalmente os olhos e avisto, no que parece ser uma prateleira presa na parede, uma luz que se destaca. Encaro o teto e posso vê-los: raiozinhos tímidos banham o pequeno quarto. Entendo tudo. Amanhece no Estácio. O sol escorre pela veneziana e se mistura à luz da vela permanente que um dia minha avó acendeu naquele que um dia fora o seu quarto.

Tateio o chão à procura de meus óculos. Reponho-os no rosto e enxergo tudo. Acordo no quartinho da minha avó. Já é maio. Estou no Rio. “Logradouro” ainda toca na minha cabeça. Experiência viva.

Levanto e caminho até a cozinha, onde o rádio ligado informa que é minha tia quem já acordou. Há café com leite na garrafa laranja sob a mesa. Passo direto para o banheiro, o último cômodo da casa. E quando volto abraço minha tia.

Ocupo um lugar à mesa enquanto trocamos palavras. Gosto tanto de estar ali. Já não estranho o novo lugar no qual a casa da minha avó se transforma. Cuidada respeitosamente pela minha tia, a casa agora ganha aos poucos o jeitinho da tia Denise Guimarães, mulher organizada, limpa e caprichosa. Sinto a presença de Yolanda Guimarães ali como nunca antes. Reencontro-a honrada pelos gestos respeitosos e cuidadosos de minha tia, enquanto percebo pequenos monumentos em memória de vovó espalhados pela casa. Em um porta-retrato especialmente bonito de vovó, há pendurada a medalhinha que ela costumava usar.

E a viagem vai se completando, enquanto ensina sobre a vida. E a morte. Cinco anos após fazer a passagem, Vovó me surge como quem nunca partiu realmente. Pelo contrário, veio para dentro de mim. De nós. Quando minha tia-madrinha Dayse sorri, encontro vovó em seu sorriso. Em outro momento, capto Yolanda sendo transmitida pelas palavras sensatas da tia Denise, ouvidas atentamente por minha mãe. Se visito meus tios-avós então, posso abraçar vovó em cada irmão seu. E quando os netinhos mais novos correm pelo sobrado, descubro a mim mesma anos antes revisitada em sua algazarra. Basta me distrair um segundo para com assombro rever vovó viva em cada irmão, filho e neto.

Cinco anos após uma aparente despedida, percebo o quanto ela ainda está entre nós. A aparente ausência física finalmente me é superada, substituída por uma presença espiritual forte, habitante de gestos, sorrisos, crenças. Cada um de seus filhos e netos abriga dentro de si, um pouco da partícula que lhes deu origem. E permanecerá entre nós enquanto formos capazes de honrá-la.

Quando anoitece e vou me deitar, ouço pela enésima vez a música que embala e aquece minha saudade da família carioca. Não sei explicar o que motiva a associação que faço entre o amanhecer no sobrado 475 e a música desde a primeira vez que ouvi “Logradouro”. Chego a escrever aos intérpretes contando minha ligação afetiva com a canção ao que recebo uma resposta um tanto quanto emocionada de Pedro e Bruno. Emocionante. Mas também, penso que sequer precisamos entender. A conexão para a viagem me basta. Esteja eu no endereço que estiver. Meu coração estará no lugar que eu sentir como meu no mundo.
                                                                                  
Muito do que somos hoje nasceu de pontinhos que brotaram em cantos espalhados do país há décadas. E traçaram linhas – nem sempre retas – até se tocarem. Qual a menor distância entre dois pontos? Afeto.

* Crônica especialmente dedicada a minha família espalhada por esse país.Muito do que sou hoje vem dali, de um sobrado no Estácio, Rio. Assim como de algum recôndito da Bahia, do sertão de Pernambuco, de um cantinho no Piauí. Até vir bater aqui dentro, em um coração maranhense.

Comentários

Elem Fonseca disse…
Voce tem um talento divino e quase inexplicável em transmitir seus sentimentos em palavras.... sábias e lindas palavras. Ao conviver com vocês, pude sentir que o amor é um sentimento tão forte e tão presente, que chega a ser tocável e isso explica esse seu talento "quase inexplicável"! Parabens!! PS: senti-me acordando no sobrado 475.
Claudio disse…
Sua escrita é emocionante, Talita! São palavras e colocações que envolve a gente do início ao fim. Demonstra um carinho e amor forte por nós familiares. Obrigado e parabéns!
Realmente, parece que estávamos todos juntos em um dos momentos que passou no Logradouro 475, pensando e transmitindo seus sentimentos. Lindo! Bjos em todos!

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