O reencontro afetivo de um estreante no carnaval com seu próprio ninho*

A primeira vez do cantor e compositor Jô Santos como um dos intérpretes do bloco tradicional Os Diplomáticos no carnaval maranhense.

Texto e fotos por Talita Guimarães

“É como se eu pudesse me ver menino correndo por essas ruas”, fala o homem maduro de barba farta, ao caminhar gingando pelas ruas do bairro João Paulo com um violão nas costas. É noite do chamado sábado magro, aquele que antecede o carnaval, e o homem em questão retorna ao bairro onde nasceu e viveu até a adolescência para uma estreia. O violão nas costas fala sobre o homem que o carrega: o barbudo de olhar emocionado é artista. Cantor e compositor, a propósito, da seara da bossa nova e da música popular brasileira. Acostumado a shows em bares e teatros. Profissional. 

Acontece que profissionais também estreiam. E sentem o frio na espinha dos iniciantes. Sobretudo quando o palco da estreia é cenário revisitado por memórias afetivas. Naquela noite, o cantor Jô Santos retornou ao João Paulo após anos para um reencontro afetivo que daria início a uma sucessão de primeiras vezes. Seria seu primeiro ensaio com um bloco tradicional. A primeira vez como cantor no carnaval maranhense. E sua estreia no carnaval de passarela, dali a exata uma semana. 

O convite para integrar o bloco tradicional Os Diplomáticos veio do intérprete e compositor do bloco Luiz Barreto, radialista que Jô conheceu ao frequentar o estúdio da Rádio Timbira para divulgar seu trabalho. Ao ser convidado para cantar no bloco com Barreto, meses antes do carnaval, Jô recuou. Não era bem a sua praia. Mas a curiosidade pela possibilidade inusitada não o abandonou. Como Barreto insistiu, interessado em incorporar o vocal de Jô à interpretação do tema 2014 “Uirapuru – Canto e Encanto da Amazônia”, o cantor aceitou o desafio. 

Quando Jô confirmou sua participação no bloco, tratou de envolver a família toda no aprendizado em tempo recorde do tema. Tinha pouco menos de 15 dias até o desfile para aprender a letra que defenderia com Barreto e os ritmistas na passarela do samba, instalada pela Prefeitura de São Luís no Anel Viário. A força-tarefa atuou da seguinte forma: a filha primogênita cuidou de acessar os arquivos – letra da música e áudio - enviados por Barreto para o e-mail, imprimir cópias da letra e salvar a música no pen drive do pai enquanto a esposa aprendia a cantar também para passar voz com o marido. Letras impressas em papel A4 amarelo, uma das cores do bloco junto com o azul e o branco, foram espalhadas pela casa. E o que se ouviu naquele lar costumeiramente embalado por Jobins nada mais foi do que a batida tradicional de um bloco carnavalesco. 

A uma semana do desfile, Jô finalmente participaria de seu primeiro ensaio com o grupo. Foi ao ouvir a letra exaustivamente que se deu conta de quais bairros o bloco representava. A voz afinada de Barreto saudava o João Paulo, além do bairro de origem do bloco, Ivar Saldanha. O ensaio marcado para aquele sábado (23/02/2014) seria no coração do João Paulo, na sede da escola de samba Turma de Mangueira. 

Jô caminha pelas ruas do João Paulo,
 bairro onde nasceu e viveu até a adolescência.
  No sábado à noite, o menino Joãozinho que oscilava entre o medo e o fascínio quando via a casinha da roça flutuar pelas ruas largas de seu bairro no carnaval foi revisto por seu eu adulto de voz firme, passos largos e olhar emocionado. “Nasci ali, onde hoje é aquela loja”, Jô Santos apontou para a loja de tecidos na Avenida São Marçal, como quem conta a própria história do começo literalmente. Ao virar à esquina, mais lembranças se ergueram do asfalto, ganharam calçadas, coloriram muros. A oficina mecânica onde o pai trabalhou consertando carros do 24º Batalhão de Infantaria Leve (antigo Batalhão de Caçadores), as casas onde viveu com a mãe e os irmãos, a escola onde as irmãs estudaram, as ruas onde a bola rolava, o alto da ladeira de onde Joãozinho testemunhou um moleque mais levado lançar uma tampa de lata de goiabada e atingir um menino menor que ia passando inocente lá embaixo... Incontáveis histórias de um tempo púbere jorraram da boca emoldurada por uma barba espessa. 
Adiantado em relação ao horário do ensaio, Jô caminhou sem pressa pelo bairro. Quando alcançou o coração do João Paulo, onde antes passavam os trilhos do trem e hoje é um calçadão colorido promovido à praça, reconheceu lares de amigos de infância. Parou em frente ao palco onde uma programação de carnaval organizada pelo governo estadual acontecia e cantarolou os versos entoados por Gerude, que acenou para ele do palco. A alguns passos dali já havia apertado a mão de Nosly e cumprimentado o responsável pelo som. Carnaval até poderia não ser exatamente sua praia, mas sendo artista em uma ilha, estaria sempre cercado de músicos conhecidos por todos os lados.

Na roda de samba: "A música é universal!"
Quando o horário marcado por Luiz se aproximou e ninguém conhecido apareceu na porta da sede da Turma de Mangueira, Jô decidiu dar mais uma volta na quadra. Talvez encontrasse o pessoal do bloco nas imediações. A essa altura já estava contagiado pela alegria do carnaval e a expectativa de cantar em um local que fazia parte de sua história. Aos poucos, falava mais de suas ligações com o samba nascidas no Rio de Janeiro, onde foi morar na juventude e conheceu a obra de mestres como Roberto Ribeiro e João Nogueira, de quem é grande fã. A duas ruas dali, parou em uma esquina ao ouvir uma música conhecida. Em uma calçada, um grupo animado reunido em volta de várias mesas brancas de plástico cantava e tocava um Emílio Santiago em ritmo de samba. “O Luiz gosta do Emílio, vamos ver se é ele que tá ali!”, Jô retrocedeu entrando na rua a fim de espiar se o amigo estaria na roda de samba. Mas ao se aproximar não reconheceu as pessoas e ia passar direto como quem não quer nada quando alguém da mesa gritou: “Ei, do violão! Volta aqui!”. Meio desconfiado, Jô acenou de volta e se aproximou hesitante. “Toca umas com a gente!”, “Senta aí!”, “Toma uma cerveja!”, os convites se sucederam. Tentou explicar que estava só de passagem, mas o rapaz careca de voz rouca lançou-lhe um argumento incontestável: “A música é universal!”. Depois dessa, Jô não pode resistir à tamanha hospitalidade. Sentou ao lado de uma pequena caixa de som, tirou o violão da capa, plugou os cabos e o microfone e sorriu para o coro de “paparaparapá” puxado pelo mesmo rapaz, que agora batucava um tantã a sua frente. “João Nogueira!”, Jô exclamou sorridente para o grupo e emendou um “Nó na Madeira” animadíssimo, acompanhado por tamborim, pandeiro, flauta e tantã. Nessa brincadeira, conduziu seu violão por quatro ou cinco sambas cantados em coro e regados a cerveja e animação. Só interrompeu sua participação na roda quando o celular tocou. Era Barreto avisando que o local do ensaio mudara, mas que ele aguardaria Jô na sede da Mangueira. O músico despediu-se então dos companheiros da roda de samba e em êxtase seguiu caminho de volta ao calçadão, onde encontrou Barreto e os ritmistas do bloco. O ensaio teria de ser realizado mais adiante no calçadão, pois o palco armado para a programação oficial de carnaval era próximo demais da sede da agremiação.

Alguns minutos depois, após apresentar Jô ao presidente do Bloco Luiz Chagas e ao mestre de bateria Pipão, Barreto apresentou Jô aos ritmistas, que agora já dispostos com os seus instrumentos fizeram os tambores rugirem em saudação ao novato. Barreto lançou a tradicional pergunta e os ritmistas responderam em coro.
- “Aos Diplomáticos?”
- “Nada!” 
- “Ao Jô Santos?”
- “Tudo!” 
- “Aos Diplomáticos?”
- “Nada!” 
- “Ao Jô Santos?”
- “Tudo!” 

Após receber as boas vindas dos ritmistas, Jô agradece a acolhida.
Apresentações feitas e som passado, deu-se início ao ensaio, que acabou sendo rápido devido ao avançar da hora e só possível graças ao consentimento da vizinhança, gesto que Barreto não deixou de agradecer imensamente ao microfone. 

Ao fim do ensaio, Jô não cabia em si. A noite havia reservado bem mais do que ele esperava. Sentado na calçada junto aos integrantes do bloco, enquanto todos renovavam as energias com um consistente caldo de ovos, Jô conversava animadamente tentando pôr em palavras uma versão resumida da experiência de retornar àquele bairro. Jô tomou uns quatro copos do caldo fumegante enquanto tentava dar conta de elaborar a noite em palavras. Estava para lá de aquecido para aquele seu primeiro carnaval como integrante de bloco.

Ensaio no calçadão em frente à sede da Turma de Mangueira
Na segunda-feira (24/02/2014) houve novo ensaio, desta vez na pracinha em frente à sede da Turma de Mangueira, que sem programação àquela noite estava tranquila o suficiente para o ensaio, com espaço suficiente também para os ritmistas fazerem uma fogueira para afinar os tambores. Mais à vontade, Jô se concentrou no ensaio alternando-se entre voz e violão para acompanhar Luiz Barreto e os músicos da harmonia, composta por um violão sete cordas, um bandolim e um cavaquinho.

Na sexta-feira, o bloco se apresentaria no Colégio São Vicente, ali no bairro mesmo. Seria mais uma espécie de reencontro para Jô, que fora aluno do colégio assim como as irmãs, que ainda retornaram ao São Vicente como professoras. Contudo, no dia, um temporal impediu que o músico conseguisse chegar a tempo ao local. E a experiência ficou no plano das ideias que comovem pelo simples sentido que carregam, ganhem corpo no plano real ou não. Passem de uma ilusão ou não. Tal como sugere o espírito do carnaval.

NO NINHO DO UIRAPURU

“A gente trabalha o ano inteiro/ por um momento de sonho”. Os versos de Tom e Vinícius costumam fazer todo o sentido para quem vive a própria arte, mas talvez este exato trecho da música “A Felicidade” caiba como epílogo perfeito para a noite em que o bloco todo paramentado flutua sob a avenida branca e iluminada da Passarela do Samba ao som ritmado de seu samba. Todo o esforço de meses dedicados à preparação do bloco – que vai da escolha do tema à confecção das fantasias, passando pela composição do samba e muitos ensaios - para uma apresentação de quinze minutos que abre o período de folia que se estende pelos dias seguintes até a terça gorda de carnaval. 

Passarela do Samba
No sábado (01/03/2014) da grande estreia na avenida, Jô chega por volta das 19h30 com a família à Passarela do Samba. Enquanto sua vez não chega, o músico se acomoda com a esposa e as filhas nas cadeiras de pista e assiste ao desfile dos demais blocos do grupo A. Dali a pouco, Luiz Barreto se aproxima para cumprimentar Jô e dar algumas instruções sobre o momento da concentração. Os Diplomáticos estavam previstos para desfilar às 23h20, mas devido a alguns atrasos na programação entram na avenida quase meia noite.

Quando a hora finalmente se aproxima, Jô se despede da família e se dirige à concentração dos blocos do lado de fora da passarela. A esposa e as filhas se imprensam junto à grade e alguns minutos depois o avistam no comecinho da avenida, já em companhia dos músicos da harmonia do bloco, os ritmistas fantasiados se agrupam mais atrás na entrada da avenida, aguardando o sinal para entrar na passarela. 

Em minutos, o locutor Frank Matos anuncia o bloco no sistema de som informando dados sobre a história d’Os Diplomáticos e comentando o tema escolhido pelo bloco para defender àquela noite na avenida. Quando diz “Em julgamento”, o sinal verde é dado e o cronômetro começa a rodar. Barreto assume o microfone saudando a todos e convocando em seguida o bloco para o espetáculo. A harmonia puxa o samba e em segundos a marcação entra firme. Cada instrumento vai encontrando lugar na música e logo o bloco inteiro está na avenida fazendo seu show. De longe, a família de Jô vibra ao vê-lo aparecer e desaparecer entre os foliões. As balizas vem à frente dançando com um gingado que parece pulsar em câmera lenta. “A batida do bloco tradicional maranhense é como a do reggae. Bate na junta da gente. Quando você menos espera, tá dançando no ritmo”, Jô já havia comentado dias antes ao ouvir o tema do bloco em casa. A resposta do público ao redor não contraria a observação do músico, agora completamente à vontade no ninho do Uirapuru. 

Músicos da Harmonia
Depois de participar do desfile competitivo na noite do sábado (01/03/2014) pelo grupo A, em que os integrantes do bloco vestidos de Uirapuru cantam e dançam enquanto tocam seus contratempos, agogôs, cabaças, ganzás e retintas, o bloco parte na segunda-feira para o circuito de rua se apresentando nos palcos do bairro Madre Deus, caldeirão cultural local. Na terça de carnaval, Os Diplomáticos tocam na sede do Boi da Lua, localizada em frente ao calçadão do João Paulo e depois seguem para o circuito de rua. 

TODO CARNAVAL TEM SEU FIM

Findado o período oficial do reinado de Momo, a folia some das ruas, praças e avenidas da cidade. A Passarela do Samba é desmontada depois da quarta-feira de cinzas e volta a ser avenida que serve de passagem para veículos de todos os portes.

Jô Santos sente como nunca antes que todo carnaval tem seu fim, como cantaram um dia os Los Hermanos.

O que permanece, no entanto, é a marca da experiência revigorante de voltar ao ninho para cantar um afeto adormecido pelo tempo, mas desperto como que por encanto, mais ou menos como cantam os versos do samba de Luiz Barreto.

“No dia em que o divino amor pintou o céu de azul
Eu preparei meu coração inteiro pra lhe dar
Mas o leviano destino quis nos separar
Você é de outro alguém, não pode me amar
Cansado da vida vazia e triste sem você
Pedi a tupã em segredo um desejo meu
Então adormeci guerreiro e acordei trovador
Um pássaro aflito entoando um canto de dor
E quando o meu canto desata faz silenciar toda a mata
Pois meu canto é o encanto deste lugar

Diplomáticos eu sou, trago essa canção de amor
A cada novo anoitecer, na esperança de você reconhecer o seu amor
E me beijar pra este encanto então se desfazer”.

(“Uirapuru, canto e encanto da Amazônia” – Tema 2014 do bloco tradicional Os Diplomáticos)

*Texto escrito especialmente para o meu pai João Batista Santos Sousa, o Jô Santos, que compartilhou comigo seu reencontro, sua música, suas histórias e emoções. 
Pois aqui está, pai, o texto que eu disse ao senhor que escreveria com a alma.
Com agradecimentos especiais ao Luiz Barreto, ao Luiz Chagas, ao Pipão e toda a turma de ritmistas d'Os Diplomáticos. Pelo convite, a acolhida e por fazer do nosso primeiro carnaval, uma bonita folia em família.

Comentários

Unknown disse…
Emocionante é pouco para definir o texto acima que embora escrito por Talita Guimarães parece ter sido elaborado por criaturas celestiais com o amor e o esmero que lhes é natural.
Obrigado, afinal, eu que fui honrado com a presença da maravilhosa família do meu amigo Jô neste projeto.

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