São Luís: a ilha é a serpente da ilha

Iniciativas de ocupação da cidade com arte e educação dialogam com a produção artística que pensa criticamente a cidade através da arte. Ambas fazem coro à necessidade de despertar uma lendária serpente.

por Talita Guimarães

Há tempos não se falava tanto em ir às ruas como em 2013. As cidades, organismos vivos que são, pulsaram mais freneticamente com suas vias tomadas por multidões que bombearam para todos os cantos o sentimento de indignação com tudo o que está fora de lugar na organização política da sociedade brasileira. Fosse a cidade um corpo humano, ruas e avenidas seriam as veias por onde [es]correm as gentes. Fosse esta cidade-humana um organismo em pleno funcionamento durante a tomada das suas vias-veias pela multidão-sangue, vista do céu azul, teria a pele rubra, como que tomada pela cólera que levou a população, motivada por movimentos sociais que confrontaram decisões governamentais que prejudicavam mais do que beneficiavam o bem comum, a se levantar contra a corrupção, os desmandos e descasos costumeiramente praticados na política brasileira. O resultado efetivo desse levante ainda não se configura como nenhuma revolução propriamente dita nos rumos da política nacional, mas tem um valor simbólico significativo. E demarca 2013 como um ano para não se esquecer tão cedo.

A capital maranhense acompanhou a onda de protestos nacional e ambientou cenas de confronto entre manifestantes e policiais, como no restante do país. Tardiamente, em relação aos primeiros sinais de inconformação nascidos em São Paulo em virtude de um aumento abusivo no preço das passagens do transporte coletivo, mas acompanhou.

Na esteira dos acontecimentos, São Luís, a capital brasileira que abriga uma lendária serpente em seu sistema de túneis subterrâneos, também foi palco em 2013 de uma série de movimentos de ocupação da cidade, dessa vez pensados por artistas e agitadores culturais. Movimentos que se não necessariamente nasceram neste ano, ganharam mais visibilidade quando realizados periodicamente e que cabem trazer para a roda de discussão pelo que guardam em comum: articulam-se em pontos descentralizados da cidade, nascem sem ligação institucional ou vínculo entre si e propõe a ocupação do espaço urbano com arte. Promovem cidadania e representam os anseios de uma geração que quer compartilhar cultura no seio da cidade. E ir além: promover mudanças que não dependam do poder público, embora surjam para suprir demandas que esbarram nas falhas dos governos.

Destacam-se aqui especialmente três iniciativas: Bota o Teu, Biblioteca do Bairro – BiblioBairro (Anil) e Movimento Sebo no Chão.

BOTA O TEU

“Se todos amamos a arte e precisamos dela, vamos promovê-la com o que cada um pode oferecer”. A declaração do estudante Vítor Bruno não poderia soar mais adequada: faz referência ao sentimento que pôs em prática uma iniciativa denominada “Bota o Teu”. Vítor é uma das mentes (e corações) por trás do evento cultural, que em 2013 foi realizado de forma colaborativa com objetivo de promover a arte e arrecadar doações para entidades de apoio a comunidades carentes. 

O  Bota o Teu, que contou com duas edições na sede da Companhia Circense Teatro de Bonecos no bairro da Praia Grande, surgiu da reunião de um grupo de amigos que decidiu organizar um evento de forma independente que agregasse música e solidariedade. “Talvez o nosso maior estímulo seja tentar comprovar que as pessoas podem produzir, sim, coletivamente - agregando esforços, ou seja, cada um botando o seu. Daí que o nosso maior lema e método de trabalho seja a colaboração. Sem uma rede, não há evento. E essa rede é formada por todos que estejam dispostos a doar-se pela promoção da arte e também em prol de instituições filantrópicas que necessitam de ajuda”, considera o rapaz.

Divulgação da edição em prol da Vila Apaco.
(Fotos: Kenny Mendes)
A 1ª edição do "Bota o Teu" foi realizada a fim de arrecadar doações para os moradores da Vila Apaco, comunidade afetada por uma incomum enxurrada provocada por uma obra inacabada em uma adutora próxima. Quando chove, um grande volume de água desviado alcança a comunidade com uma força que devasta as casas e inunda o local. A partir de uma parceria com o movimento Salve a Vila Apaco, o primeiro Bota o Teu saiu do papel e ganhou a rua com a apresentação de artistas locais reunidos em prol de uma causa social. Inicialmente pensado para acontecer em um teatro, o evento acabou sofrendo alterações na forma graças a mudança de local: o Teatro da Cidade, onde seria realizado o show foi interditado, obrigando os organizadores a encontrar outro local para acolher o evento. Aconteceu de ser justamente a Companhia Circense de Teatro de Bonecos, que promove eventos artísticos na rua de sua sede. “Quando idealizamos o primeiro BOT, que inicialmente foi programado para acontecer em um teatro, ficamos em dúvida entre cobrar ou não ingressos. Só que logo quando nos atentamos para o que realmente estávamos construindo em torno desse evento, optamos por utilizar um espaço público (o teatro) para fazer um evento sem fins lucrativos pessoais, mas que tivesse uma resposta social, uma contribuição para a comunidade. Assim resolvemos fazer uma arrecadação de alimentos, que nesse primeiro momento foi destinada à Vila Apaco. Nossa parceria com o movimento Salve Vila Apaco, nos permitiu também conhecer de perto aquela comunidade, um contato que se deu pela parte através da música”, conta Vítor.


Tairo Lisboa do Bota o Teu (à dir.) com integrantes do "Salve a Vila Apaco" 
durante entrega das doações para comunidade.

Questionado se existe alguma informalidade no clima do evento, com as ideias de "palco" ou "microfone abertos", Vítor Bruno concorda que a abertura para a expressão livre dos presentes é uma consequência do formato do evento, cujo nome sugere um convite à participação para além do papel de espectador/apreciador. “Como o evento acontece de forma aberta e espontânea, acabam acontecendo essas participações não programadas. É algo que sempre acaba incrementando a noite e fazendo valer aquilo que nós acreditamos. Importa mesmo é que as pessoas se conheçam, interajam, troquem ideias e quem sabe até fluidos”. Pelas duas edições já passaram nomes da cena local como Marcos Magah, Maratuque, Heriverto Nunes, Acsa Serafim, Tiago Máci e Trio Melopeia, Zanto Holanda, Paulo César Linhares, Nathalia Ferro, entre outros.

Bigorna Trompete (Foto: Marco Aurélio)



Marcos Magah (Foto: Marco Aurélio)


Maratuque Upaon Açu em apresentação
na 2ª edição do BOT.
Mas engana-se quem pensa que a motivação de Vítor e dos demais agitadores culturais independentes como Tairo Lisboa, também responsável pelo BOT, nasce somente do prazer em mostrar que é possível promover cultura ao reunir talentos interessados em expor seus trabalhos e ajudar ao próximo. Críticos da escassez de espaços alternativos, os rapazes não estão alheios à ausência de equipamentos culturais públicos. “Quanto ao descaso público e a proposta do evento eu diria que não é possível termos uma cena cultural autônoma em São Luis se os produtores locais e artistas não se entendem como pessoas que dividem a mesma cidade, os mesmos problemas e outras matrizes que fazem parte do que somos cultural e socialmente. Não podemos esperar que governo e instituições privadas façam isso por nós, ainda mais nesse estado. E se todos amamos a arte e precisamos dela vamos promovê-la com o que cada um pode oferecer. Não deixa de ser uma forma de resistência, de justiça com as próprias mãos, a várias mãos. Embora, isso não signifique que não precise mais existir políticas de fomento e patrocínios. Com que o temos, vamos existindo e nessas voltas a roda vai girando”, opina Vítor Bruno.

Em outubro, durante a 7ª Feira do Livro de São Luís - FeliS, evento literário realizado pela Fundação Municipal de Cultura, Tairo Lisboa protagonizou um protesto no espaço da FeliS contra a falta de esclarecimentos sobre o processo convocatório de trabalhos e intervenções artísticas para a feira, aproveitando para cobrar a demora na reforma do Teatro da Cidade e na entrega do novo Circo Cultural Nelson Brito (antigo Circo da Cidade).

Tairo e Vítor não são os únicos a demonstrar insatisfação com a ausência de espaços públicos para promoção de arte e educação. Mariany Carvalho, que curiosamente integra o grupo de percussão Maratuque que se apresentou na segunda edição do BOT, desenvolve um projeto em seu bairro que nasce de semelhante sentimento.

BIBLIOBAIRRO

Inquieta com a falta de uma biblioteca em seu bairro e ciente de que muitos problemas de sua comunidade esbarravam não só em serviços públicos deficientes, mas também na ausência de mobilização da própria comunidade a estudante de Design da Universidade Federal do Maranhão Mariany Carvalho resolveu arregaçar as mangas, recrutar voluntários que compartilhassem do mesmo sentimento e fazer alguma coisa pelo bairro onde mora. Foi mais ou menos assim que surgiu a ideia de criar uma biblioteca comunitária que atendesse aos bairros do Anil, Pão de Açúcar, Piquizeiro, Alto do Pinho, Cruzeiro do Anil e Matança, na periferia de São Luís. Do desejo de unir acesso à cultura à melhoria de vida de uma comunidade.

Para comprovar que a ausência de um espaço cultural no bairro não era uma insatisfação
Voluntários em pesquisa com
os moradores do bairro.
unicamente pessoal, Mariany conversou com outros moradores e empreendeu juntamente com mais alguns amigos que se voluntariaram a levar a ideia adiante, uma pesquisa de opinião no bairro, para identificar a demanda por uma biblioteca a partir do reconhecimento da relação dos moradores – de todas as idades – com a leitura.
“Os jovens, em especial, são os mais inquietos quanto às potencialidades que a comunidade tem, mas que atualmente se afoga em descaso. Além disso, muitas mães e pais em busca de uma educação melhor para os filhos reclamam da ausência de bibliotecas e outros espaços de estudo para usufruto dos filhos. Durante os quatro meses de entrevistas, os voluntários puderam avaliar de perto e entender essas necessidades, conhecendo melhor a comunidade e divulgando o projeto, que teve ótima aceitação”, conta Mariany Carvalho.

De janeiro a maio de 2013, os voluntários do projeto, jovens de variadas formações entre Relações Públicas, Design, Ciência da Computação, Artes Visuais, Arquitetura e Urbanismo, visitaram as principais ruas do bairro para conversar com os moradores. O resultado dos quatro meses de pesquisa pode ser conferido no infográfico a seguir.


A partir desse movimento, surgiu a Biblioteca do Bairro – BiblioBairro (Anil) que conta com a participação de 12 voluntários, além do apoio das Agentes Comunitárias de Saúde - ACS's da região e de alguns parceiros.

Após o período de pesquisa, Mary e sua equipe promoveram a arrecadação dos livros e revistas que comporão o acervo da biblioteca comunitária. Diante da grande quantidade de material recebido, a BiblioBairro esbarrou no primeiro impasse que dificulta a manutenção da iniciativa: a ausência de uma sede própria. Conseguir o espaço físico para instalar a biblioteca é a prioridade atual do projeto. “Apesar de ser um projeto de grande importância para a sociedade, nem sempre é fácil encontrar apoio financeiro para tal. Pretendemos manter o projeto através da colaboração de patrocinadores e também através de pequenas atividades beneficentes, como rifas, brechós e bazares.”, planeja a estudante. Durante a 7ª edição da Feira do Livro de São Luís realizada em outubro, a BiblioBairro montou uma banquinha no estande da EdUfma, onde comercializaram os primeiros produtos com a marca BiblioBairro: camisas e canecas. E no último dia do evento literário, Mariany ministrou uma palestra sobre a experiência obtida até então com o projeto.

Enquanto uma sede não é estruturada, a BiblioBairro organiza ações de aproximação com a comunidade. Em outubro, promoveu a edição maranhense do HappyD, evento recreativo idealizado pelo blog Design Culture com oficinas e sorteio de brindes em comemoração ao dia das crianças e agendado para acontecer em outras três cidades brasileiras – Recife, Belo Horizonte e São Paulo. E em novembro, agendou a realização da Chamada BiblioBairro cujo objetivo era reunir jovens entre 16 e 26 anos do bairro para apresentar a BiblioBairro e promover um diálogo sobre a importância do projeto para a comunidade. Contudo, na tarde agendada, o público não compareceu à União dos Moradores do Pão de Açúcar, obrigando a equipe a adiar o evento. "Estamos organizando a Chamada BiblioBairro para que ela aconteça no primeiro semestre de 2014, especialmente no mês de abril. Sabíamos que enfrentaríamos certas dificuldades no decorrer do projeto e encaramos cada acontecimento como um aprendizado. Estamos conversando com a comunidade, buscando apoio de outras pessoas com experiência em realizar ações comunitárias, realizando pesquisas, remodelando algumas atividades, etc. Isto nos ajuda a encontrar maneiras mais eficazes de estreitar a relação do projeto com os moradores do bairro e realizar ações que beneficiem um número cada vez maior de pessoas.", destaca Mary.

Apesar das dificuldades encontradas, Mariany Carvalho e os voluntários da Biblioteca do Bairro seguem firmes quanto à validade de mobilizar a comunidade para a criação de um espaço de leitura: “Acreditamos que a chave pra resolução de muitos problemas sociais no nosso bairro, cidade ou país está na consciência crítica que cada pessoa pode desenvolver e, consequentemente, nas ações que podem ser realizadas a fim de que a realidade melhore. A BiblioBairro é um projeto que vale a pena ser apoiado e estimulado por atingir o setor que é o principal agente de transformação de uma sociedade: a educação. Ser um voluntário, doador, parceiro ou patrocinador de projetos como este são maneiras de fazer parte dessa transformação positiva em uma comunidade”.

Em um curioso movimento de ocupação cidadã da cidade, a notícia de um projeto independente realizado em um bairro não demora a chegar aos ouvidos de gente atuante em projetos similares que despontam em outros pontos da cidade. E assim, o vínculo até então inexistente entre ações isoladas, é estabelecido de forma dialógica e construtiva.

Em dezembro, por exemplo, a BiblioBairro marcou presença em um evento realizado aos domingos em um outro bairro de São Luís, que tem em comum a autonomia de sua organização e o desejo de promover atividades que deem opção de lazer e cultura à comunidade. Quanto à experiência, Mariany conta: "Participamos de uma edição que fazia parte da Missão #7 do projeto Imagina na Copa. O Bazar Limpa do Bem tinha um objetivo muito nobre de promover o desapego e também de ajudar iniciativas como a BiblioBairro, e com muito prazer estivemos presentes naquela ação, apresentando um pouco do nosso projeto às pessoas e também disponibilizando nossos produtos para venda. Dialogar com o Movimento Sebo no Chão - que além de ser o cenário da ação também era uma das iniciativas apoiadas pelo Bazar - foi uma experiência bastante proveitosa, pois a ideia de utilizar um espaço público para atividades culturais se aproxima muito dos objetivos que a Biblioteca do Bairro apoia e pretende alcançar também.".

A diferença é que essa outra iniciativa não exatamente precisa adquirir uma sede porque ocupa com arte um espaço urbano de convívio: a praça.

MOVIMENTO SEBO NO CHÃO

Cai a tarde do terceiro domingo de dezembro de 2013. Aos poucos, uma praça localizada no Cohatrac, bairro de São Luís - MA, vai sendo ocupada por pessoas de todas as idades. A igreja católica do outro lado da rua atrai certo movimento. As lanchonetes ao redor da praça também. No centro do espaço aberto de convívio, um parque de diversão pisca suas luzes multicoloridas de forma chamativa. No único canto livre da praça, próximo a uma escadaria e a um pequeno auditório administrado pela igreja e disponibilizado para eventos comunitários, reúne-se um grupo insuspeito. Um longo tapete estendido no chão forra o repouso de livros, LP’s, CD’s e DVD’s. Perpendicular ao tapete, uma banca de madeira expõe os livros à venda da editora Pitomba. Ao lado, um palco surge ao redor da montagem de uma bateria. Dentro do auditório, uma caixa de som é instalada e alguns músicos ajustam os instrumentos. No andar de cima, uma laje coberta por uma estrutura metálica com falhas no teto que deixam o céu estrelado a mostra, a equipe do Éguas Coletivo Audiovisual ajusta o data show para mais uma exibição do seu longa-metragem “Luíses – Solrealismo Maranhense”. Uma faixa amarrada na grade do andar de cima do auditório da igreja identifica a ocupação proposta pelo cenário descrito: Movimento Sebo no Chão.

Fundado por Diego Pires, Jorge Davi, Scarface (Carlos Vinicius), Raiza Gabriela (Gabi), Teteu (Matheus Mendes), Pedro Ícaro e Eryck Arlequim, o movimento que ocupa a Praça Nossa Senhora de Nazaré no Cohatrac aos fins de tarde de domingo (“Os que acompanham as aparições do “Sebo no Chão” já sublinharam em seu cotidiano o: domingo, depois do pôr do sol”, poetiza Diego) 'oficialmente' desde 8 de abril de 2013 tem seu embrião em julho de 2012, quando Diego começou a vender livros de literatura na praça algumas vezes por semana para ganhar alguns trocados, trocar ideias e conhecer novas pessoas. Foi assim que surgiu um diálogo com outros jovens que ‘perambulavam’ naquela mesma praça, segundo conta o próprio Diego. O rapaz destacou também o apoio e liberação para venda de livros no local dado pelo Padre Flávio Colins da Paróquia Nossa Senhora de Nazaré, que administra a praça.

O nome “Sebo no Chão” empregado para batizar o movimento guarda forte significado para seus organizadores. “Movimento diz respeito a uma empreitada coletiva, mútua, plural, não estática e, portanto, viva. Sebo remete-nos a ideia de reutilização, em suma, uma nova significação pra uma serie de coisas que pareceriam descartáveis como já é comum em nossa era de acumulação e degradação rápida de objetos, ideias e mesmo de vidas. Chão, uma retomada da “matéria” propriamente dita – em contraste ao universo digital –, pôr os pés para fora de casa pura e simplesmente para dialogar num espaço público, tem sido uma tarefa árdua para muitos na contemporaneidade”, declara Diego Pires.


Praça habitada por arte e ideias em movimento. Show de Acsa Serafim.
(Foto: Rômulo Ribeiro)

Cybele Oliveira no registro
de Samara Silvestre.

Aberto às mais diversas expressões artísticas, o movimento acolhe as apresentações dentro da viabilidade da realização. “É sempre válido lembrar que tal iniciativa é independente (financeiramente falando) e ocorre em via pública. Temos recebido Expo/Venda de Materiais Impressos: Livros, Fanzines, Revistas, Jornais, Mangás, Apresentações Musicais, Teatro, Cinema, Malabares além das tradicionais vendas de CDs, DVDs, LPs, Lanches Vegan etc.”, Diego explica. Entre os artistas e bandas que já tocaram no sebo, ele cita nomes como The Thomas, Devotos de Riba, Tammys Loyola, Marcos Lamy, Totti Moreira, Marcos Magah, Tiago Máci, Bigorna Trompete, Vinil do Avesso, Pedro Moura, Acsa Serafim, Manlio Macchiavello, Grillos Elétricos, Farol Vermelho e antecipa desculpas aqueles que a memória não contemplou no momento da entrevista.
Pirofagia. (Foto: Marco Aurélio)

A organização de cada edição envolve um esquema horizontal. Diego confecciona os cartazes e faz a divulgação. No domingo, dirige-se ao local do evento com seus livros, revistas e demais materiais onde encontra seus já fieis companheiros: Cybele Oliveira e seus lanches vegetarianos; Adriano Santos com seus malabares e discos de vinil; Marlon Orlok e suas camisetas estampadas. Além deles, conta também com artistas que se revezam nos malabares, alguns até cuspindo fogo! “Enfim, é algo bastante espontâneo e complexo de ser delimitado aqui nestas poucas linhas que se seguem”, conclui Diego por e-mail.

O Movimento Sebo no Chão tem algumas características peculiares: é realizado em uma praça fora do centro da cidade, aos domingos, por pessoas da comunidade. Quando indagado qual o entendimento sobre o movimento de apropriação de um espaço público destinado ao convívio, que é uma praça, ocupado por atividades que promovem cultura, arte e educação sem vínculos com órgãos públicos ou empresas privadas, Diego Pires discorre longamente sobre a questão:
“Certa vez o blog do Zema Ribeiro publicou uma matéria com o seguinte tema: Sebo No Chão pra descentralizar. Tal colocação toca diretamente nesta questão aqui levantada. Bom, temos diante de nossos olhos dois fenômenos peculiares: o primeiro diz respeito ao esvaziamento dos espaços públicos, um evento característico da (pós)modernidade e de “nossas” noções de diversão, conforto e em suma: de vida. O segundo diz respeito à “ideia”, para se usar a terminologia de Platão, (ou pelo menos o que ainda sobrou dela...) de cultura, arte e educação, que em nossa capital está estritamente ligada aos núcleos Boêmios da cidade: Reviver (Praia Grande), Centro, Madre de Deus, etc. Deixando bem claro aqui, que nada temos contra tais localidades, tendo em vista que frequentá-las faz parte de nossas vidas. No entanto, pensasse que é preciso “expandir os horizontes”, sair um tantinho do mais do mesmo, ou do que se chama mundo a fora de “clichê”.

No que diz respeito à suposta “apropriação”, talvez seja uma colocação delicada demais pra ser utilizada. Apropriação deveria ser considerada a ação que “fábricas de festas” – às quais se quer vale a pena citar o nome – promovem pela cidade a fora: cercar um espaço público e cobrar para que as pessoas possam ter acesso a ele. Promover cultura, arte e educação – esta última, segundo a nossa perspectiva não deve ser entendida como “dever” somente da escola institucionalizada, pois entendemos que a escola é sim um local de educação, mas é apenas UM dentre tantos – é o que no plano ideal deveria acontecer nos espaços públicos, no entanto o fato de a sociedade esperar incansavelmente pela iniciativa Estatal e Privada, fez com que esta se esquecesse do seu poder de manifestação que, diga-se de passagem, é o maior dentre todos.”.
A página do Sebo no chão no Facebook costuma postar incentivos para que os frequentadores do evento conservem o espaço e também notifica os membros da comunidade na rede social quando entra em contato com órgãos públicos para solicitar serviços de manutenção. Quanto à preocupação com a conservação do espaço, Diego conta que devido à quantidade de edições já realizadas no local, os frequentadores do sebo já têm a praça como uma espécie de segunda casa. Relação que, segundo o rapaz, deveria ocorrer entre as pessoas e os demais espaços públicos. “Dito isto nada mais justo que manter tal espaço com o mínimo de salubridade, o que, no entanto não é uma tarefa tão fácil. A fragilidade da atuação do poder Estatal e Municipal em manter a cidade com o mínimo de condições físicas de existência é notável a cada esquina. Para se ter uma ideia, a nossa citada Praça não possui nenhum grande latão de lixo público disponível, o que dificulta em muito manter o local em ordem. Em muitas ocasiões os próprios membros do Movimento Sebo no Chão fazem o trabalho manual de limpeza do local, trabalho este que inclusive já pagam via impostos.”, ressalta o rapaz.

A partir da experiência com o Sebo, pergunto se Diego acredita ser possível chamar a atenção do poder público para as demandas da população por espaços urbanos estruturados e atividades descentralizadas de incentivo à cultura e educação. Em resposta, ele considera que chamar a atenção do poder público para tal questão seja uma estratégia retórica, no entanto, necessária. “O Movimento Sebo no Chão se encontra sempre atento a tais questões, no entanto, existe para além delas, como citado o prazer é, sem dúvidas, o motor destes tantos teimosos que, para citar um conhecido baiano Raul Seixas: não ficam sentados no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar”, conclui.

A ILHA - COM AS PESSOAS QUE NELA HABITAM - É A SERPENTE DA ILHA

Naquele terceiro domingo de dezembro em especial, o Sebo no Chão contou com uma super edição ao receber em uma única noite várias cabeças pensantes da cultura que tem em comum uma produção crítica bastante inquieta com os problemas sociais da cidade de São Luís. Dentre as atrações programadas para aquela edição, entre músicos, cineastas, escritores e artistas praticantes da pirofagia, reuniram-se ali as mentes por trás do premiado “Luíses – Solrealismo Maranhense” e o poeta Celso Borges, autor do recém-lançado “O futuro tem o coração antigo” e coeditor da revista Pitomba ao lado de Bruno Azevedo e Reuben da Cunha Rocha, escritores também presentes ao evento naquela noite.


Na banquinha da Pitomba Livros e Discos eram lançados "As aventuras de cavaloDADA em + realidades que canais de TV" de Reuben da Cunha Rocha, "A casa do sentido vermelho" de Jorgeana Braga, "O futuro tem o coração antigo" de Celso Borges e "Baratão 66" de Bruno Azevêdo. 
(Foto: Saara Sousa)


Super Sebo no Chão, realizado em 15/12/2013. 

(Foto: Saara Sousa)
Celso Borges lançava no Sebo no Chão o livro “O futuro tem o coração antigo” (PITOMBA, 2013). Acompanhando o movimento de pensar a cidade através da arte, o livro convida à reflexão sobre as relações entre o tempo, a cidade e a percepção que as pessoas constroem do lugar onde vivem – sobretudo se no tempo de vida decorrido existe um período de afastamento da cidade. É nesse contexto que Celso Borges produz uma poesia carregada de afeto e impressões pessoais sobre sua relação com a cidade onde nasceu e cresceu. O poeta lança mão da memória afetiva da São Luís de sua infância para falar da São Luís que habita seu imaginário durante as duas décadas em que vai morar em São Paulo e expor por fim suas impressões sobre a terceira São Luís que se apresenta aos seus sentidos no retorno à cidade. O resultado é um poema permeado por ternura e afeto, mas também por uma crítica incisiva à precariedade dos serviços públicos, ao subdesenvolvimento, à sobrevida agonizante da promissora cidade de outrora. Borges nega o saudosismo logo na estrofe de abertura do livro, defendendo-o como o retrato terno da cidade que habita seus olhos, memória e coração. Nas palavras do poeta, o poema é, antes de tudo, “um exercício de ternura”.

Intervenção poética com Celso Borges 
(ao microfone) e Beto Ehongue (discotecagem). 
(Foto: Saara Sousa)
Ao leitor, “O futuro tem o coração antigo” lega um passeio sensorial pela cidade de Celso, que não só dele, é de todos. O poeta compartilha sua visão lançando luz sobre a evolução – ou seria involução? – da cidade durante a passagem do tempo. As fotos que ilustram o livro resultam de um outro exercício do olhar: foram produzidas por uma turma do curso técnico em Artes Visuais do IFMA – Campus Centro Histórico utilizando uma técnica conhecida como pinhole, que cria uma atmosfera onírica com as fotografias captadas por câmeras confeccionadas com latas e reveladas em preto e branco. E vão além: estabelecem o diálogo visual entre a São Luís captada pela nova geração com as São Luíses da vida de Celso Borges.

É também sobre a cidade ser minimamente o que há de comum entre seus habitantes que trata uma das mais interessantes expressões audiovisuais produzidas no Maranhão nos últimos tempos e exibida àquela noite no Super Sebo no Chão: "Luíses - Solrealismo Maranhense" (BRASIL, 2013, 75min), longa-metragem produzido pelo Éguas Coletivo Audiovisual, grupo formado em 2012 por jovens cineastas.

O filme, cujo roteiro mescla documentário com ficção, conquistou três prêmios na 36ª edição do Festival Guarnicê de Cinema, tradicional evento realizado anualmente em São Luís. Lucian Rosa conquistou o prêmio de Melhor Direção, Kenny Mendes e Marcela Rocha levaram o de Melhor Direção de Arte e Lauande Aires o de Melhor Ator.

"Luíses - Solrealismo Maranhense" espanta para longe o registro óbvio, utópico e
romântico da São Luís quatrocentona, prenhe de lendas e histórias controversas sobre uma tal fundação francesa. A originalidade da abordagem começa pelo perspicaz título: no lugar do gentílico “ludovicense” atribuído a quem nasce na cidade, o roteiro vai atrás de quem habita o lugar, concebendo a necessidade do pertencimento de quem é a cidade ao anunciar que “todos são luíses”. Nesse sentido, toca em pontos sensíveis do modo de vida na capital maranhense. Suscita a discussão sobre os problemas da cidade mostrando a precária condição de moradia de comunidades marginalizadas, onde o poder público não chega, com depoimentos e entrevistas de moradores e ativistas além das falas contundentes do advogado popular Rafael Silva e do jornalista Emílio Azevedo. Curiosamente, o filme traz à tona os casos de duas comunidades cuja falta de moradia digna seguem ameaçadas pela água: a Vila Que Era é formada por palafitas ancoradas no leito de um rio, cujo maior drama é a ausência de saneamento básico e o risco constante de cair das precárias ruelas construídas com madeira, que quando cedem ao peso dos passantes somado à instabilidade da maré provocam acidentes graves; e a já citada Vila Apaco, alvo da solidariedade de iniciativas como o Bota o Teu e movimentos como o Salve a Vila Apaco. Em ambos os casos, os moradores sofrem o dilema de morar em uma ilha mal estruturada, lutando diariamente contra a serpente que ameaça tragar sua dignidade.

Para contar a história desses e tantos outros “luíses”, o roteiro é costurado por cenas e histórias reais – como o das duas comunidades citadas –, trechos de vídeos de campanhas políticas, do filme Maranhão 66 de Glauber Rocha, depoimentos sobre a situação da assistência hospitalar prestada pelo governo e histórias ficcionais bastante verossímeis que em alguns pontos sugerem terem sido inspiradas na história de vida do próprio elenco. Uma escolha da direção que leva a crer nisso é o fato de cada personagem ser chamado de Luís/Luíse + o nome real do ator e representarem histórias que guardam semelhanças entre o Luís/Luíse representado e a vida do ator fora da tela.

Tudo isso com uma bela e inovadora fotografia e um texto bastante crítico, mas também dotado de um humor irônico e irreverente. "Luíses - Solrealismo Maranhense" não explora dramas da vida real, mas humaniza a cidade expondo as histórias da gente que a habita, embora partes da cidade não sejam dignamente habitáveis. E são por essas partes, entre as tantas outras coisas fora de ordem, que cada cidadão deve lutar.

Os protestos que tomaram conta do país no primeiro semestre de 2013 também estão no longa do Éguas Coletivo Audiovisual. As imagens captadas da multidão em São Luís sugerem o despertar de um povo conhecido por uma morosidade secular. O filme mostra a travessia da Ponte José Sarney - ligação da “cidade velha” à “cidade nova” - e o movimento serpenteante sugerido pela multidão em protesto pelas ruas do Centro de São Luís até as sedes dos governos estadual e municipal onde os manifestantes protagonizaram confrontos diretos com a polícia, protestos contra a imprensa sarneísta, mas também cenas de uma beleza singular como o aperto de mão cordial entre um policial montado a cavalo e um manifestante que lhe entregou um buquê de flores amarelas.

A eclosão do movimento solrealista que evoca o sol escaldante do Maranhão para iluminar a efervescente cultura popular local convidando os luíses a unirem-se pela cidade contra toda tirania, surreal e absurda a um regime dito democrático, surge em uma obra cinematográfica milagrosa – dado o pouco recurso empregado: R$ 1.200 arrecadado em pedágios e na Festa Solrealística – e fundamental para entender a desordem que reside na cidade há tempos. Não será devaneio crer que considerados os movimentos artísticos e sociais de ocupação do espaço urbano a metáfora mais adequada à São Luís não é a comparação da cidade com um corpo humano, mas de seu povo com a tal serpente adormecida. Resta saber se o final da lenda, que profetiza o fim da cidade quando a cabeça da serpente tocar a cauda, será modificado ou não. O fim pode tanto representar o total declínio da condição de vida digna na cidade ou o nascimento de uma nova forma de organização social. 

2014 nasce embalado pelo caos deflagrado pelos conflitos no sistema penitenciário maranhense e uma onda crescente de violência nas ruas de São Luís. A postura dos cidadãos diante das decisões que estruturam a cidade pode ser sua perdição ou salvação. Como um leviatã urbano, a ilha de São Luís é a serpente da própria ilha. Esteja desperta ou adormecida.

Comentários

Anônimo disse…
Talita, que texto lindo. Uma delicia le-lo, impossivel parar e nao ser tomada por um sentimento crescente de esperanca e otimismo. Voce arrasou! Parabens tambem pelo novo lay out do blog.
Obrigada pela visita e pelo comentário! As iniciativas abordadas no texto demonstram que existem pessoas críticas, criativas e atuantes em São Luís. Exemplos positivos.
Abraço grande! ;)
Leonardo Pato B disse…
Gostei da materia , muito bom mesmo, faltou falar do movimento q trabalha com oficinas de malabares na praça nauro machado no reviver, aulas e performances todas as segundas a partir das 18:30h ! e lembrando q e gratuito ! muito bom por sinal, quem quiser conferir e so passar por la.
Olá, Leonardo!
Dica legal, essa da oficina de malabares.Pode render também uma pauta bacana. Valeu!
Abraço grande!
Jônatas Barbosa disse…
Genial!
O século XX nos foi roubado. Mas o XXI é nosso!

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